sábado, 31 de março de 2018

Imortalidade - Parte II



A irrelevância do Cristo

Por esta época as comemorações pascais relembram aos cristãos a sua dívida de gratidão pelo sacrifício humano do Cristo, que lhes permite o perdão de pecados e esse perdão abrir a porta da vida eterna.
Não podemos esquecer que o cristianismo é a evolução do judaísmo e que esta religião incluía na sua prática o sacrifício animal, entendido este e sendo símbolo, do sacrifício humano. É antiga esta ideia de que é possível a salvação através do sacrifício humano. [1] Há evidências arqueológicas que a cultura israelita não esteve imune a estas práticas e que chegou a participar delas [2]. A aceitação da morte sacrificial de um humano à deidade pode ser notada no episódio em que o Deus Jeová solicita que Abraão sacrifique seu filho Isaque. [3] Apesar da argumentação dos apologistas é bom não esquecer que um Deus Todo-Sábio não precisaria de realizar nenhuma prova a um dos seus adoradores para saber da profundidade da sua devoção. Da mesma forma um Deus Todo-Amoroso nunca colocaria o fardo dessa decisão sobre um dos seus adoradores e muito menos sendo ele fidelíssimo. Só podemos então entender este tipo de narrativa bíblica, como uma contaminação cultural, de uma sociedade que aceitava o sacrifício humano.
Paulo escreve “…Cristo, no tempo determinado, morreu por homens ímpios.” [4] e vê nessa morte uma evidência do amor de Deus [5]. Há latente um legalismo baseado na Lei de Talião que pode ser expresso na frase de vida por vida [6]. Notamos aqui ainda um primitivismo jurídico que não é compaginável com um Deus Todo-Sábio, a menos que este Deus evolua nas suas concepções em plena sintonia com a evolução cultural dos seus adoradores. Poderia ser, mas isso leva-nos a perguntar qual a utilidade desse Deus mesmo para os seus crentes?
Dificilmente hoje aceitaríamos sacrifícios humanos num contexto religioso, apesar de eles acontecerem sob formas explícitas nos casos dos suicídios colectivos[7][8] ou dissimulados quando os crentes recusam medicina. As Testemunhas de Jeová não estão isentas deste sacrifício humano por recusarem transfusões de sangue. [9][10]
Alguns reflectirão nos actos envolvendo a Páscoa cristã. A maioria contudo apenas propagará uma tradição sem pensar muito nas razões da sua celebração. É este desapego entre a racionalização das crenças e o automatismo do cumprimento da tradição, nesta preguiça mental, que nasce campo para a manipulação. Não se está muito longe de emocionalmente ser conduzido a praticar o que nunca antes se pensou, não se ficando assim longe da possibilidade de violência contra si próprio como no caso dos suicídios coletcivos ou na violência contra outros, pelo facto de não partilharem ou seguirem as tradições que se estimam.
Fará ainda sentido celebrar a Páscoa ou a Morte de Cristo? Para a maioria das Testemunhas de Jeová fará muito pouco sentido, já que a morte de Cristo é primariamente para benefício dos ungidos, classe manifestamente minoritária e que se interpõem entre eles e o Cristo, como mediador secundário. É a negação, embora encapotada, de que Jesus seja “o caminho, a verdade e a vida” e que “ninguém vem ao Pai senão por mim”.[11]  Agora para chegar ao Pai há uma classe intermédia composta de ungidos, que nos últimos anos foram reduzidos à acção do Corpo Governante.
Mas para os católicos o problema não se afigura menor, pois se cada um ao morrer recebe após a morte o seu julgamento e assim vai parar ao céu ou ao inferno, qual é mesmo o papel do Cristo? Nas palavras de Paulo e assumindo o Cristo como Deus “Pois todos nós compareceremos perante o tribunal de Deus”[12], sendo que aqui Deus fica reduzido a um mero juiz de almas. Nenhuma necessidade de redenção, já que aqui é o final da questão.
Assim sem se darem conta, o Cristo é tornado irrelevante na obtenção da eternidade. Menorizado nas Testemunhas de Jeová onde para a maioria não age como mediador, e mero distribuidor de sentenças post-mortem no catolicismo.
Aquele que nos Evangelhos é descrito como ressuscitador de mortos e a fonte de vida eterna[13], como prometendo aos desgraçados o Paraíso[14], acaba na irrelevância de uma figura folclórica. Nada que não estivesse profetizado.[15]
A humanidade está sempre mais perto da morte, pelas guerras, pelas suas diferenças culturais, ou até pelas suas crenças estranhas no poder redentor de um sacrifício humano. Raramente a humanidade se aproxima de uma busca séria pela eternidade e temas relacionados. Os alquimistas, os curandeiros, foram perseguidos pelos religiosos amantes da morte, mesmo quando buscavam uma prolongação da sua vida física. Mesmo hoje, os “combatentes” do envelhecimento são olhados com suspeição. Criaturas estranhas que parecem querer perverter o rumo “natural” das coisas. [16] Presumo que isto é apenas um efeito secundário das velhas ideias religiosas que concebem como blasfémia a hipótese de uma eternidade conseguida por mãos humanas sem a necessidade de um Cristo redentor, sem a necessidade um sacrifício, bem expresso nas palavras “Éis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!” [17] Ao dizer que “tira o pecado do mundo” é o mesmo que dizer que tira a morte. Aventar sequer a possibilidade de tirar a morte sem necessidade do “Cordeiro” soa tremendamente blasfemo! Afinal, alcançada a imortalidade, fará ainda sentido a religião?

[3] Gênesis 22:2: Então ele disse: “Por favor, leva o teu filho, o teu único filho, a quem tanto amas, Isaque, vai à terra de Moriá e oferece-o ali como oferta queimada num dos montes que te indicarei.”
[4] Romanos 5:6
[5] Romanos 5:8: Mas Deus recomenda-nos o seu próprio amor, por Cristo ter morrido por nós enquanto ainda éramos pecadores.
[11] João 14:6
[12] Romanos 14:10
[13] João 11:25
[14] Lucas 23:43: “Eu te digo hoje: Estarás  comigo no Paraíso.”
[15] 1 Pedro 2:4: “… uma pedra vivente rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa para Deus, …”
[17] João 1:29

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