sábado, 26 de setembro de 2015

Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão


 
O título da nossa postagem é um velho ditado português que procura transmitir a ideia de que é inútil a alguém treinado numa arte, ser igualmente bom noutra. Por isso, um sapateiro pode ser magnífico, mas não se pode esperar que por isso saiba tocar violino (rabecão). [1]

A expressão proverbial enche-se de significado ainda mais quando a consideramos no contexto da religião. À religião permitimos que diga os maiores disparates, na maior das solenidades, com vénia e respeito. A religião intromete-se, às vezes de forma intolerável, em todos os aspectos da vida humana. Infelizmente, não apenas para opinar, mas muitas vezes para manipular, dirigir e conseguir.

Mas creio que não é difícil compreendermos que alguém com dores nos intestinos, não procure ser consultado por um cozinheiro, mas por um médico! Tal consulta poderia tornar-se até um destino fatal, caso se tratasse de uma peritonite, por exemplo. [2]

No entanto é fantástico como a religião subverte o bom senso, não se coibindo de emitir opiniões médicas! É conhecido que as Testemunhas de Jeová rejeitam as transfusões de sangue. O assunto tornou-se tão embaraçosamente ridículo que agora permitem-se certas fracções, mas não outras. Nenhum texto bíblico suporta esta divisão do sangue em fracções. Trata-se apenas de sapateiros a tocar rabecão.

Basicamente, as Testemunhas de Jeová baseiam-se em dois versículos bíblicos para suportar esta sua posição quanto à não aceitação de transfusões de sangue. O primeiro deles, que toma precedência, foi a ordem dada a Noé depois do dilúvio e da saída da arca e que consideram de carácter universal, uma vez que segundo a Bíblia, toda a Humanidade descende de Noé e dos sobreviventes com ele, ao dilúvio. O texto reza: “Somente a carne com sua alma — seu sangue — não deveis comer.” [3] Reforçam-no depois com as decisões do que assumem como o primeiro concílio apostólico e que toma a seguinte forma: “Pois pareceu bem ao espírito santo e a nós mesmos não vos acrescentar nenhum fardo adicional, excepto as seguintes coisas necessárias: de persistirdes em abster-vos de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação. Se vos guardardes cuidadosamente destas coisas prosperareis. Boas saúde para vós!” [4] Um primeiro aspecto que importa realçar é que as referências ao sangue nos dois contextos parecem claramente de ordem nutricional. Ou seja, parece haver uma proibição quanto a comer sangue. 

Não parece razoável crer que o autor de ambos os versículos pensasse sequer em transfusões de sangue. As Testemunhas de Jeová insistem que sim. Vamos conceder que possa ser uma hipótese possível, mas vamos ser intelectualmente honestos e usar o mesmo raciocínio noutros contextos bíblicos. Vejamos este texto que se encontra numa das epístolas de Paulo a Timóteo: “Não bebas unicamente água, bebe também um pouco de vinho pois faz-te bem às tuas frequentes indisposições.” [5] É razoável pensar que este era apenas um conselho bem intencionado de Paulo ao seu jovem amigo, pois talvez a água disponível a Timóteo pudesse não ser da melhor qualidade e evitaria problemas de estômago bebendo vinho. Já não parece razoável que aplicássemos este texto como sendo uma obrigatoriedade de que todo o cristão “com frequentes indisposições”, deva beber um pouco de vinho; e que não fazer assim, seja demonstrativo de falta de fé!

Mas podemos ir mais longe e supor que de novo o Divino Mestre, Jesus em pessoa, regressasse a esta Terra e imaginemos o diálogo:
— Olha Mestre, nós cumprimos todos os teus mandamentos, e nem deixamos que nos transfundissem sangue! 
— Mas quem é que vos impediu de tomar transfusões de sangue? 
Com ar certamente atónito mostrarão ao Divino Mestre que a descida à Terra lhe deve ter transtornado o seu cérebro perfeito e lhe mostrarão pressurosos o texto de Atos, já atrás mencionado: — Vede Senhor, aqui… — e apontarão com o dedo os versículos exactos. 
— Oh Valha-me Deus! Mas onde se fala aqui de transfusão de sangue? 
— Mas Senhor tomá-lo nas veias é mesmo que comê-lo! — Jesus dará um profundo suspiro, semelhante ao que deu quando disse “perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” e explicará: 
— Aqui nem fala sequer em comer sangue… 
Todas as caras estarão espantadas com esta revelação e ainda em plena dissonância cognitiva dirão em protesto: 
— Mas está lá escrito “abster-vos de sangue”! 
— Pois está! Isso quer dizer que os cristãos devem ser pacíficos e pacificadores, não devem manchar-se de sangue, como que tirando a vida de outra pessoa. 
 O silêncio será sepulcral, até um mais afoito notar:
— Como pode ser isso? Lá também diz para se abster de estrangulado, estrangulado  não é sangrado, por isso...
Jesus terá um sorriso resignado e compreensivo e dirá:
— O que se queria dizer com isso, é que até a morte dos animais devia ser compassiva. O animal não precisa sofrer para morrer ou ficar a escorrer sangue até se esvair, entendeis?
— E então como devemos abster-nos de coisas sacrificadas a ídolos?
— No sentido de que não há espiritualidade maior do que uma relação pessoal com Deus, que não se estabelece por sacrifício nenhum, mas pelo amor…
— E então como devemos abster-nos da fornicação?
— No sentido de que o amor, a intimidade e o afecto não se compram, partilham-se liberalmente. Se o amor se pagasse, eu que dei a minha vida por vós receberia apenas vinte moedas?

Seria nesta altura que alguns se afastariam do Mestre dizendo:
“Esta palavra é chocante; quem pode escutar isso?” [6]

[3] Génesis 9:4
[4] Atos 15:28, 29
[5] 1 Timóteo 5:23 versão A Bíblia para Hoje
[6] João 6:60

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A Gaiola Dourada



O título deste “post” é o título de um filme[1] sobre a emigração da américa latina em direcção aos EUA. Os emigrantes demasiado pobres, vêem nos EUA o paraíso, o eldorado, o fim da sua pobreza e o cumprimento de todos os sonhos de prosperidade. Mas será mesmo? Pelo menos, o percurso até esse mítico paraíso é doloroso. Uma selva povoada por cruéis feras humanas. E à medida que se aproximam do objectivo, vão sendo espoliados de tudo. Dos quatro que partem, só um chega ao destino para acabar num matadouro, literalmente.

Portanto, a questão impõe-se: Vale tentar tudo em busca da felicidade? Devemos usar a liberdade para ir em busca dela?

Numa abordagem descuidada e despretensiosa a tentação é de responder que sim.

Valerá a pena trocar a liberdade por uma condição de prosperidade?

Será que a liberdade não é uma condição essencial para a felicidade? A Bíblia fala de liberdade e de libertação como algo legítimo a alcançar. Elemento essencial para a alcançar é o conhecimento, um conhecimento verdadeiro.[2]

A dependência de algo ou alguém deve decorrer da ordem natural das coisas. Se o não for é uma coerção.

À dependência de Deus, caso exista enquanto Criador do Universo, insere-se na ordem natural das coisas, sendo como é causa última. Como vê Deus a liberdade? Ele quer concedê-la a todos os seus filhos - Rom. 8:21 “…a própria criação será liberta…e terá a liberdade gloriosa dos filhos de Deus.” A liberdade para ser alcançada exige esforço. Qual esforço? O de conhecer a verdade, pois o Mestre diz: “Conhecereis a verdade e esta vos libertará”[2] Como se alcança a verdade se cada um tem a sua própria interpretação dos factos?

Creio que a melhor forma ou seja, a ferramenta mais eficaz tem sido o método científico. Alguém poderá argumentar que este apenas explica a matéria deixando de lado coisas como a filosofia e a religião. Devo argumentar que o conhecimento científico precisa de um enquadramento filosófico e pode mesmo beneficiar da visão religiosa, como hipótese para a compreensão da realidade.[3] Mas nunca conheceremos a realidade, apenas nos aproximamos qual assímptota. [4]

Devo argumentar aqui que creio que Deus se agradará imenso do progresso que fizemos com essa ferramenta. O conhecimento exacto é a sua essência, o seu espírito! Se a verdade liberta, se Deus pretende conceder-nos liberdade, então como diz Paulo “…onde estiver o espírito de Deus, ali há liberdade.”[5]

Alguns apologistas argumentarão que o conhecimento científico não pode ser a verdade de Deus, já que contradizem as Sagradas Escrituras. Penso que não é causa para rejeitarmos a ferramenta do método científico, ainda. O conhecimento científico ao contrário do religioso não é dogmático. Ele não se fecha sobre as suas próprias afirmações de forma irredutível. O conhecimento cientifico é permanentemente posto em causa e diferente do religioso ele verdadeiramente é “…como a luz que clareia mais e mais, até o dia estar firmemente estabelecido”.[6]

Portanto, para o crente realmente devoto, um que se preocupe mais com as questões de fundo que de forma, um que abandone o farisaísmo tentador e queira realmente abraçar o discipulado do Mestre, precisa olhar a ciência como um aliado. E perante as incompatibilidades do conhecimento científico e as velhas Sagradas Escrituras, tem de usar o seu discernimento, distinguir o trigo do joio e deixar-se levar pelo espírito de Deus à verdade que o liberta.

A religião não oferece uma verdade fresca, uma água saudável para beber e crescer. Ao invés é uma ressequida e velha árvore, ladainha encantatória para o seduzir, igual à serpente que hipnotiza a ave. Ou como a original enganadora que a troco do conhecimento pretende cobrar um preço. A maioria das organizações religiosas pretende que o crente troque a sua liberdade em troca de uma gaiola dourada, que ilude o crente num falso senso de felicidade, muitas vezes assente apenas em promessas futuras. Pode ser um lugarzinho no céu na bem-aventurança de uma intimidade com Deus, ou para os menos angelicais, talvez apenas e só a promessa de um Paraíso na Terra. O prazer de viver e usufruir sem doença esta nossa humana existência, é realmente uma promessa apelativa. O crente é portanto um pássaro que iludido pela minhoca é apanhado pelo visgo, vivo ainda, mas deixando de ser livre. Livre de buscar a verdade, a tal que lhe permitirá ser livre, verdadeiramente livre. Apanhado é metido numa gaiola junto com outras vítimas. 

Igual ao emigrante que consegue finalmente chegar aos EUA, talvez caia finalmente vítima de cultos que continuarão a fazer da sua vida uma prisão, uma gaiola dourada. É nessa gaiola se espera que cante feliz, mesmo que não possa mais voar.

[1] La Jaula d'Oro
[2] João 8:32
[3] Aqui entendida como a verdade última.
[4] [Geometria] Linha recta disposta em relação a uma ramificação infinita de curva, de modo que distância de um ponto da curva a esta recta tende para zero quando o ponto se afasta indefinidamente sobre a curva. in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/assintota [consultado em 30-07-2015].
[5] 2 Coríntios 3:17
[6] Provérbios 4:18, na mesma abusiva interpretação das Testemunhas de Jeová, porque o texto se refere ao percurso de uma pessoa e não a um aumento de conhecimento doutrinário.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Soberania III



A intervenção de Deus nos assuntos da Humanidade quer no geral, quer nos casos particulares, poderia entender-se como uma violação do livre-arbítrio e simultaneamente uma coerção da soberania individual. 

Se a consciência expressa a soberania de Deus, as acções do indivíduo demonstram o seu grau de aproximação à vontade de Deus ou a sua vontade de se aproximar Dele!

O medo, sendo uma reacção primária, é um eficiente manipulador da soberania individual. O medo ultrapassa os circuitos racionais do cérebro, induzindo reacções primárias, nem sempre nos melhores interesses do indivíduo. As. Religiões organizadas aproveitam-se liberalmente deste mecanismo para curto-circuitar a expressão da soberania individual e substituírem a soberania de Deus expressa pela consciência, pela sua própria. Uma religião organizada é aquela que substitui a soberania de Deus pela sua.