domingo, 17 de agosto de 2014

O Poder da Morte



Nada deve ser mais aflitivo na vida do que a consciência plena de que somos mortais. Foi esse o preço a pagar por sermos portadores de um brilhante cérebro, que deixou de estar obcecado com a sobrevivência e em escapar da morte, para pensar nela enquanto tal, no que ele significa em termos individuais. Não pensamos muito nisso, porque é penoso, e quando somos obrigados a lidar com essa omnipresença da morte, temos a urgência de buscar respostas. Ela aterroriza-nos. Tudo o que nos puderem dar para amenizar esse medo, para a combater, nós vamos agarrar! Desse medo nasce uma obsessiva busca de se livrar da sua grilheta e na derrota, tivemos que conceber narrativas que tornassem fácil o manuseio [1]. É também nesse medo, que as religiões se alicerçam, construindo narrativas derivadas e usando-a como ferramenta de manipulação. Mas depois das narrativas onde o nosso desconhecimento permanece, e do qual não há vitórias, pois sempre ela acaba ganhando, tudo o que permanece é o medo. E é o medo, trazido por esta aguda consciência da morte e do seu poder inescapável que nos leva finalmente à conversão [2]. Por isso a fé não é uma coisa racional, porque no fundo é apenas um consolo.

Alguém disse que a melhor invenção da vida, tinha sido a morte, porque só por esta a vida pode evoluir [3]. Talvez seja assim, mas essa visão num contexto evolutivo, não consegue explicar tudo. Buscamos o sentido para que as coisas sejam assim, já que achamos a vida tão curta para a grandeza do Universo [4].

Mas aceitemos por hipótese, que a evolução é um acaso e que ela é a razão da nossa existência. Mesmo que ainda se debata porque caminho aqui chegámos [5]. Porque tem o Universo necessidade de vida? Porquê esta necessidade de através dela contrariar a tendência natural de ocupar o nível energético mais baixo? [6]. Isto é, não faz muito sentido numa visão meramente materialista e evolutiva do Universo, o gasto de energia em desenvolver a vida e esta sentir que tem de enveredar por uma complexidade cada vez maior. Sim, compreendo que posso ser acusado de um agenciamento que não existe no Universo. Aceito isso, mas fica sempre por explicar porque razão a evolução do Universo (e não apenas a evolução biológica) tem lugar. A menos que, como já referi em publicações anteriores, aceitemos o postulado do Princípio Antrópico, em que o Universo existe para que o possamos sentir. Ou seja, sem nós o Universo nunca teria lugar. Creio que percebem, os evolucionistas também, e é por isso que sentem um certo desconforto na ideia de que isto implica uma espécie de propósito latente, como se alguma entidade superior tivesse estabelecido um desígnio ao Universo.

Pode até argumentar-se que a evolução nos deu esta capacidade de agenciamento por uma questão de sobrevivência. Seja! Que as visões em túnel aquando das experiências de quase-morte, podem ser explicadas por uma má oxigenação do cérebro e a libertação de certas substâncias químicas que nos fazem ter essas visões [7]. Mas qual então a vantagem evolutiva desses mecanismos? Mesmo que fosse para ‘adoçar’ o momento da morte, como ele podia passar pelos genes para as gerações vindouras, se estamos a morrer e não há mais a possibilidade de reprodução? [8] A menos que a evolução não ocorra meramente por via reprodutiva, e volto a sentir desconforto, mas ocorra também por sincronicidade [9]. Admitir isso, é passar por cima do materialismo irredutível essencial à teoria da evolução, ou não será?

E se abrimos a porta, mesmo que por uma nesga, não virá por aí uma justificação de todos os misticismos deixados para trás pelo avanço de uma ciência materialista? Uma que nega que após a morte, não existe mais nada em termos de consciência? E que tal como dizia Salomão tudo na vida presente não passa de vaidade? [10] Não há metafísica na evolução, apenas pressões selectivas. Não há anjos, nem um Deus de barbas brancas. Não há nada. Apenas a máquina mundi a incinerar mundos e a criá-los por acaso, sem propósito, sem sentido, sem agenciamento nenhum. E contudo… Neste nosso desejo de saber, que nos levou da interrogação mais básica ao método científico, sempre suspeitámos que há algo mais para além. É por isso que ainda nos continuamos a interrogar, não é? Na ciência fomos corajosos ao deixarmos o senso comum, ou ainda hoje acreditaríamos que o Sol gira à volta da Terra e não o seu contrário. Sem o microscópio talvez ainda acreditássemos na geração espontânea de criaturas vivas! Percebemos que o que parece, nem sempre é. E continuamos a suspeitar que a vida guarda os seus mistérios. Talvez na próxima… [11].


[1] http://www.ted.com/talks/stephen_cave_the_4_stories_we_tell_ourselves_about_death
[2] https://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=51B8MzcxOX0#t=1088
[3] http://www.cultofmac.com/121101/steve-jobs-death-is-very-likely-the-best-single-invention-of-life-it-is-lifes-change-agent
[4] http://www.ted.com/talks/david_deutsch_on_our_place_in_the_cosmos
[5] http://www.ted.com/talks/elaine_morgan_says_we_evolved_from_aquatic_apes#
[6] http://pt.wikipedia.org/wiki/Entropia
[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Experi%C3%AAncia_de_quase-morte 
[8] http://pos-darwinista.blogspot.nl/2010/06/beco-evolutivo-sem-saida-nas-ilhas.html
[9] http://www.ted.com/talks/steven_strogatz_on_sync
[10] Eclesiastes 1:2; 3:9; 12:8
[11] http://www.ippb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2644:pesquisas-cientificas-sobre-a-reencarnacao&catid=80:mythos

domingo, 3 de agosto de 2014

Os amigos do Diabo



Pintura de Hyeronimous Bosh

Alguém disse que “...o Diabo tem muitos amigos, mas não é amigo de ninguém...” frase esta que demasiadas vezes se tem revelado genuína. Pode parecer contraditório que alguém queira amizade com tal personagem malevolente e traiçoeira, mas quando vemos no mundo real os admiradores de ditadores e criminosos de guerra, devemos procurar as razões da amizade em outra parte. Nem sempre a amizade resulta desinteressada, de modo que certamente os amigos do Diabo buscam com ela alguma vantagem. 

Nem sempre é clara essa amizade, assim como nem sempre é clara a vantagem. Mas os psicopatas têm uma racionalidade que a razão desconhece e são esses os que mais buscam a amizade do Diabo. 

A questão precisa contudo recuar no tempo: Donde surgiu o Diabo?

Num mundo influenciado pelo pensamento judaico-cristão até ao excesso, o Diabo parece ser quase tão antigo como o Deus bíblico. Faz parte do grande drama cósmico que nos arrasta na sua esteira até à consumação dos séculos, em que se espera, finalmente o mal tenha fim, vencido pelas forças do Deus Bom. De facto, o Diabo é o mais perto do dualismo que o monoteísmo judaico-cristão consegue chegar. Ele, o Diabo é absolutamente necessário para que um mundo terrível e abundante em maldade, possa coexistir com um Deus primariamente Todo-Poderoso e simultaneamente amoroso. Não que a presente situação acabe a abonar em favor Dele, mas confere-Lhe atenuantes. 

Aliás se lermos o AT (escritos hebreus) não encontramos a personagem, a não ser aqui e ali, meio envergonhada e sempre subserviente do Todo-Poderoso. Não fosse sermos acusados de preconceito e quase diríamos que o Diabo dos judeus é um Diabo tímido, destinado a fazer o trabalho sujo que Deus por alguma razão não quer fazer. Temos os sacrifícios destinados a Azazel [1], que os judeus deviam fazer a par dos sacrifícios ao Deus, Jeová; mostrando uma situação de igualdade entre os dois, num dualismo expresso.[2] Embora possa resultar numa surpresa para o crente, para o historiador talvez não seja, porque vê nisso um reflexo do pensamento da época. Israel não vivia numa redoma e era permeável aos pensamentos dos seus vizinhos, nomeadamente cananeus, babilónios e egípcios. Estes vizinhos tinham nas suas mitologias personagens que travavam a Grande Batalha Cósmica contra as forças do mal. Podemos dizer que, na sua essência, eram dualistas: as forças do Bem contra as forças do Mal. Israel, com o passar do tempo, e face a uma nação permanentemente invadida e subjugada, precisou de explicar a ausência de Jeová no seu destino. Uma forma de explicar porque foi necessário o período Macabeu contra o helenismo invasor e mais tarde a subjugação romana. Inseri-lo num drama cósmico, não retirando a sua esperança de uma libertação divina. No cristianismo isto vai tomar uma outra dimensão e passar a outro plano, o plano espiritual, deixando todas as contradições terrestres. 

O Diabo que até aqui era um ser tímido vai ganhando força na chamada literatura apocalíptica que começa a surgir no judaísmo, e que nos foi facultada pelas descobertas nas cavernas de Q'umran. Várias seitas judaicas, entre estas os essénios, viam-se envolvidas neste drama cósmico enquanto eleitos combatentes face a um mundo gigantesco vítima complacente e muitas vezes cúmplice das forças do Mal. O fim é sempre o mesmo, os eleitos das forças do Bem, acabam sempre vencendo o Mal por maior e mais forte que este seja. É permanente contudo esta situação de combate entre Bem e Mal. Sempre o dualismo. Mesmo o cristianismo era uma destas seitas judaicas, antes de se autonomizar. 

Por isso tudo, o Diabo parece pronto e acabado no NT (escrituras gregas), como se não fosse necessário explicá-lo, face às suas poucas aparições no AT. Só a título de exemplo, no AT não temos um único relato de um exorcismo e no NT eles são a eito! Só isso devia arrebitar as orelhas aos mais curiosos. 

Assim o Diabo, é uma criação não de si próprio, mas de homens perturbados com o problema de fazer coexistir a maldade com um Deus Todo-Poderoso e Bom. Não conseguiram vir com nada melhor do que a invenção de um Diabo, encarnando e dirigindo todas as forças do Mal! 

O Diabo é assim como um amigo imaginário, que tal como os amigos imaginários serve para nos tranquilizar, partilhar as alegrias e compartilhar das tristezas. É o recurso infantil de lidar consigo mesmo. 

Às vezes como humanidade, precisamos de um amigo imaginário. Mas um inimigo também pode fazer as mesmas vezes. Este inimigo imaginário passou a estar demasiado presente durante a Idade Média, onde especialistas teológicos entraram em frenesim com a personagem e perseguiram ferozmente todos aqueles que na sua suspeita pudessem ter algo a ver com o Maléfico. Chegaram a escrever doutos tratados sobre as actividades deste, quais as perguntas adequadas numa excomunhão para obter confissões das mais torpes fantasias, que afinal eram apenas reflexo da sua própria imaginação, muito mais do que de um mal real e concreto. Se ainda se tivessem ficado só pela escrita... Mas a perversidade em nome de Deus ou do Diabo, não sei qual é a mais horrenda. Só sei que foram queimadas pessoas, por serem diferentes, por não embarcarem em idiotices de inimigos imaginários ou por terem outros, não importa! Como disse um destes psicopatas no seu fervor religioso: “Matai-os a todos, Deus reconhecerá os seus!”[3] 

A caça às bruxas, ou seja a demência moral, vai atravessar vários séculos antes que a hectacombe reduza de velocidade e pare. E contrariamente ao que nos querem fazer crer, não há distinção na barbárie entre católicos e protestantes. Ainda subsiste no catolicismo como “Congregação para a doutrina da fé”. [4] No domínio protestante temos as Comissões Judicativas das Testemunhas de Jeová, que mais não são que tribunais eclesiásticos que julgam apostasias. [5] Apenas não queimam ninguém na fogueira ou praticam a lapidação, porque os Estados se fartaram dos disparates da religião e sensatamente se tornaram mais seculares. 

Ambos, quer sejam católicos ou protestantes, acham que toda a voz diferente, é a voz do Diabo. E embora se digam cheios de fé, parecem viver aterrados no medo do Diabo. Palpita-me que não acreditem que Deus seja Todo-Poderoso e devessem ser eles os primeiros a serem julgados. Nos seus medos, na sua fraqueza moral ceifaram muitas vidas. Não importa quantas foram, é irrelevante. Morrer por causa de uma fantasia criada por homens perturbados, mesmo que só uma vida fosse ceifada, já seria de mais. Para colocar as coisas na sua proporção imagine ser condenado porque admira o Darth Vader dos filmes Guerra das Estrelas[6], tendo em sua casa fotografias dele, ou talvez o capacete! 

Entende quão ridículo seria? Sim, compreendo o contexto histórico, toda a população partilhava da mesma fantasia, excepto os diferentes... Não se esqueça que por causa de fantasias semelhantes alguns ainda hoje podem pagar um alto preço, por serem diferentes dos outros, por não aceitarem as fantasias dos outros, as arbitrárias linhas de fronteira definidas pelos homem. E porque os contextos mudam, e porque mudam as fantasias, as linhas de fronteira e os costumes, não acham que faz sentido ao invés de matar, ostracizar, faz mais sentido tolerar? 

É que a intolerância, o rigor, o zelo, mesmo que aparentemente bem intencionado, apenas produz vítimas; fazendo com que muitos dos devotos de Deus, acabem sendo afinal verdadeiros amigos do Diabo.

[1] Levítico 16:10 “mas o bode sobre o qual recaiu a sorte para Azazel deve ser posto vivo perante Jeová para fazer expiaçãopor ele, a fim de ser enviado ao ermo, para Azazel.”
[2] Levítico 16:8 “E Arão tem de tirar sortes sobre os dois bodes, uma sorte para Jeová e outra sorte para Azazel.”
[3] http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzada_Albigense#A_cruzada_dos_bar.C3.B5es_ou_guerra_rel.C3.A2mpago [4] http://pt.wikipedia.org/wiki/Santa_Inquisi%C3%A7%C3%A3o
[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Apostasia
[6] http://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Gal%C3%A1ctico_%28Star_Wars%29