As religiões são muito diversas,
mesmo se pensamos que todas elas são caminhos para deus(es) [1]. As religiões
são diversas também naquilo que consideram como essencial, como o seu núcleo
duro, o cerne, o alicerce da sua existência. Uns consideram que é prática, a
estrita observância dos ritos, o que pode incluir posturas, festividades e/ou
limitações dietéticas. Outras a sua doutrina, a validez de seus dogmas, a
antiguidade das suas tradições [2]. Outras ainda como contribuem para a espiritualidade,
para o crescimento do individuo.
Mesmo entre as religiões que
dizem seguir a Cristo, esta variedade na essência é notória. Assim alguns
cristãos acham que a Escritura sendo importante, não é o mais importante,
porque a Escritura, embora essencial, a sua voz chega-nos pela interpretação dos
devotos e dos santos. Acham assim que a Escritura e a tradição são pares
indissociáveis do Caminho da Verdade. Outros acham que a Escritura é a única
autoridade, valendo por si só, descartando toda a tradição. Variantes acham que
a interpretação válida pode provir do mais humilde dos homens e se esforçam por
permitir que toda a voz seja ouvida, o testemunho. Outros ainda há que
consideram como mais importante a relação com Deus, no seu carácter mais
emocional e íntimo, abstraído de uma visão mais agarrada à letra da Escritura e
encarando esta como um guia geral, pois é a experiência pessoal de uma comunhão
com Deus, o mais importante.
Qual é o melhor?
Alguns insistem que o melhor, que o mais importante é a Verdade. Talvez até se respaldem nas palavras do Cristo que dialogando sobre estas questões a certa altura afirmou: “…Para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade.” (João 18:37) Portanto, para muitos, esta Verdade que o Cristo veio testemunhar é o mais importante. Também consideram que a verdade se encontra nas Escrituras, porque estas são palavra de Deus [3].
Mas esta paixão pela Verdade como essência do cristianismo é eivada de escolhos e problemas. Curiosamente esta apetência pela Verdade, estas palavras do Cristo em especial, apenas encontram eco no evangelho de João, o mais tardio, mas também o mais elaborado e filosófico, talvez afinal o mais afastado do próprio pensamento do Cristo.
O que era importante para o
Cristo?
Alguma verdade doutrinária? Um apuro semântico na formulação dos dogmas? Alguma verdade doutrinária então? Seria difícil, pois de alguma forma ele reescreveu a Verdade ao reinterpretar as Escrituras. Isso é claramente visível nas suas abordagens sobre o Sábado. Em termos doutrinais não se pode esquecer a importância do sábado e que foi pela violação deste que os israelitas são levados ao exílio Babilónico, como ajuste de contas pela sua falha em cumprir este mandamento divino. No pós-exílio judeus zelosos [4] vão cumprir escrupulosamente o sábado; afinal aprenderam a lição!
Contudo este zelo no cumprimento,
no respeito pela Verdade de Deus, foi às vezes tão esticado que colidiu com os
interesses humanos constituindo-se uma carga e às vezes beirando a irracionalidade
ou a hipocrisia [5]! Por isso jesus bate num ponto essencial ao afirmar: “O
sábado veio à existência por causa do homem, e não o homem por causa do
sábado;” (Marcos 2:27)
Portanto resta a interrogação: O
que é mais importante? Alguma dogmática ordem, mandamento absoluto a ser
intransigentemente cumprido, ou o homem, os seus anseios de bem-estar e
felicidade?
Alguns insistirão que a Verdade é
de suma importância. Não estou tão convencido que esse seja o ponto central do
cristianismo. Mesmo os judeus hoje, não me parecem preocupados com dogmatismos
doutrinários, encarando a verdade, como um processo dinâmico e dialéctico. Acho
que têm razão.
O que é importante? Para que
precisa o homem de Deus? Tudo o que fazemos, mesmo quando não acertamos, é uma
tentativa para sermos felizes. Sim, a felicidade do Homem é realmente o
essencial. Se não o fosse, porque teria o Cristo proferido um discurso apenas
sobre aquilo que contribui para nos fazer felizes? [6]
Mas creio que Cristo disse o que
era mais importante nesta discussão, entre a pureza doutrinária e a felicidade
humana. A verdade essencial para Ele era que o mais importante era o homem
alcançar a felicidade. As suas palavras, vida e ministério, o seu sacrifício
final, são em última análise o caminho para a Humanidade alcançar a
felicidade.
Acho que Ele não se importará
nada que continuemos a tentar alcançá-la. [7]
[1] “God Is
Not One” de Stephen Prothero
[2] Este respeito pelo antigo, como sendo de alguma forma
mais legítimo, em especial no que diz respeito à religião, é uma herança
cultural dos romanos.
[3] “…a tua palavra é a verdade.” (João 17:17)
[4] É deste zelo que nasce a Tora e a interpretação
rabínica, visto que estes zelosos não encontravam resposta a algumas das suas
perguntas no Pentateuco. Por exemplo, o Pentateuco não diz a que horas começa o
sábado e a que horas termina, apenas diz que o dia deve ser guardado como
santo.
[5] “Amarram cargas pesadas e as põem nos ombros dos homens,
mas eles mesmos não estão dispostos nem a movê-las com o dedo.” (Mateus 23:4)
“E ele disse ao homem com a mão ressequida: “Levanta-te e
vem para o centro.” A seguir, disse-lhes: “É lícito, no sábado, fazer uma boa
acção ou fazer uma má acção, salvar ou matar uma alma?” Mas ficaram calados.”
(Marcos 3:3,4)
“Hipócritas, não é que cada um de vós, no sábado, desata da
baia o seu touro ou o seu jumento e o leva para dar-lhe de beber?” (Lucas
13:15)
[6] O capítulo 5 do evangelho de Mateus merece uma leitura,
embora o discurso se estenda até ao capítulo 7 inclusive.
[7]
“Persisti em pedir, e dar-se-vos-á; persisti em bater, e abrir-se-vos-á.”
(Mateus 7:7)