domingo, 13 de janeiro de 2013

Judas Iscariotes, o Mal-Amado


Judas era um nome comum em Israel. A Bíblia por exemplo até tem um pequeno livro, pretensamente escrito por um Judas, embora não saibamos qual deles é, pois em Lucas e em Actos, a lista dos apóstolos deixa-nos com dois Judas.

Sobre Judas, as Escrituras mostram alguma dissonância nos relatos, sendo que quanto mais recentes são, mais a figura do Judas aparece vilipendiada. Por exemplo no evangelho de Marcos, diz-se que Judas entregou Jesus às autoridades, mas não se esclarece quais as suas motivações. Em Mateus, já aparece a motivação, sendo ganhar 30 moedas de prata, mas fala de algum remorso que o acaba por levar ao enforcamento. Em Lucas já diz que foi o Diabo que o arrastou para o acto de trair. E em João ele é chamado de “filho da destruição” e quase equiparado a um demónio encarnado. No livro de Actos diz que ele cumpriu profecia e que morreu não enforcado como diz Mateus, mas que rebentou pelos intestinos.
Não menos importante, Paulo não dá qualquer importância ao homem como traidor, nem sequer o menciona por nome, dizendo simplesmente que Cristo foi “entregue”.

Sabemos que Judas deve ter vindo de uma família abastada pois a ele foi entregue a responsabilidade pelas contas dos apóstolos. Ora sendo Mateus um profissional dos impostos (colector) e habituado a lidar com dinheiros, é estranho que se tenha preterido este em favor de Judas, se Judas não soubesse lidar com dinheiro e registos.

Se as profecias apontavam para um traidor, alguém dentre a humanidade teria de cumprir esse infame papel. E portanto, o destino de Judas estava traçado.

Contudo acho que isso nos leva a problemas sérios se entendido dessa maneira simplista. Se Jesus morreu por todos, também morreu por Judas!

Se a morte é o salário pago pelo pecado. Então, ao morrer, Judas pagou tudo! Pode então aguardar a ressurreição “tanto de justos, como de injustos”[1].

Alguns talvez prefiram um Judas morto e enterrado para sempre.

Mas o facto de ele ter depois rejeitado o dinheiro e se ter suicidado, não indica um Judas arrependido? Alguém com consciência suficiente para lamentar o que fez?

O ladrão da caixa das contribuições, afinal não era assim tão ganancioso, pois foi devolver as moedas de prata, numa tentativa de remediar o mal, de por fim ao contrato. E se Judas é execrável, quão execrável são os que lhe pagaram? Contudo, estes últimos tornaram-se “obedientes à fé”[2] e alcançaram a salvação e este convivendo tão de perto com o maior homem que já por cá andou, não foi sensível ao seu amor? Foi capaz de trair?

Por outro lado, esta traição é uma coisa estranha. Não estava Jesus pregando publicamente? Para que precisavam os sacerdotes de alguém que lhes indicasse quem era o Jesus que procuravam? Não o conheciam sobejamente? E seriam assim tão ingénuos, que não teriam os seus informadores, que lhe relatariam em pormenores, todas as movimentações de Jesus? É bom lembrar aqui que a decisão de o matar, foi uma ideia amadurecida no tempo e não alguma fúria repentina! Portanto mesmo que não houvesse um Judas, os sacerdotes sempre acabariam por ter uma oportunidade de o apanhar. Judas só existe para cumprir profecia e não por uma necessidade prática do propósito dos sacerdotes de matarem Jesus. Embora entenda que foi conveniente, apanhar Jesus pela calada da noite, sem agitar as multidões como era propósito dos sacerdotes. Isto porque na altura Jerusalém estava cheia de peregrinos que tinham vindo para a Páscoa.

Mas após a Páscoa qual era o problema? As multidões desmobilizam e até acabam por ser manobradas. Veja-se como gritaram[3], quando Pilatos tentou libertar Jesus!

Há um conjunto de pontas soltas à volta de Judas, que precisam ser resolvidas.

Curiosamente na última ceia, Jesus parece identificar claramente quem é o traidor. E repare-se no que Jesus lhe diz: “aquilo que tens de fazer, faze-o depressa!” E o relato diz que Judas sai. Aliás para Jesus estender o bocado de pão para ele, quer dizer que Judas se sentava perto do Mestre[4] e como tal era próximo dele[5], como se diz de João por exemplo[6]. (Talvez seja esta proximidade que faz com que por inveja, João o demonize no seu evangelho![7])

Coloquem-se na pele do Judas por momentos: O Mestre acabou de dizer que há um traidor, identifica-o[8] — “o que mergulha o pão no prato comigo”[9] — diz de seguida para ele fazer o que tem de fazer. A pergunta é: Se fossem identificados como o traidor, o que fariam? Se ouvissem o Cristo dizer-vos “faz o que tens de fazer” não ficariam em temor? E como já mencionei o Judas tinha consciência. Uma consciência que o levou a rejeitar o pagamento.[10]

Mais ainda, a frase “aquilo que tens de fazer, faze-o depressa!” não combina com um instrutor amoroso como nos é dado a entender que o Cristo é. Não ficaria de bom tom, Jesus tentar arrazoar com Judas? Evitar que ele se tornasse “filho da destruição”? Como diz o personagem interpretado por Nicholas Cage no filme Next[11], “Cada vez que olhas para o futuro, ele muda, só porque olhamos para ele!” Jesus podia ter mudado o futuro de Judas.

Curiosamente Paulo, que é o último a ser escolhido por Jesus de forma directa, faz referência aos doze[12] e nenhuma em especial a Judas. Tem de haver uma explicação! Será que Judas não traiu mas ‘entregou’ Jesus?

Talvez tudo o que possamos [13] censurar a Judas, é o ter querido lucrar com a morte de Jesus, e nem sei, se mesmo isso é o mais importante para o condenar. As Escrituras até mencionavam a quantia, pela qual Jesus seria avaliado,[14] e com o pormenor de que esse dinheiro seria lançado no templo!

Se, como se diz num dos evangelhos, Satanás tomou conta de Judas[15], então que culpa tem Judas?
Jesus não libertou tantos de demónios? Como pode um homem ser culpado de ser tomado pelo demónio? Jesus, ao libertar pessoas do domínio de demónios, nunca as culpou por tal situação lastimável! Fazê-lo em relação a Judas, é forçar as coisas.

Mesmo a sua saída conforme relatado em João 13:27 a 30 parece estranha: De noite é que o Judas ia comprar alguma coisa ou dar aos pobres? Demasiado inverosímil! A Páscoa era comemorada após o pôr-do-sol, portanto entre o lavar dos pés, a refeição e tudo o mais, certamente seria tarde! Segundo os eruditos o animal era morto entre as 18 e as 19:20[16], amanhar o bicho e cozinhá-lo, nunca devia durar menos de uma hora, o mais provável é ninguém estar a comer antes das 20:00, e no relato estamos já no final da refeição! Mesmo que a refeição fosse de 30 minutos, Judas nunca sairia antes das 20:30-21:00. Não acredito que houvesse pobres nas ruas a essa hora, ou negociantes com casa aberta! Ainda para mais, com todo o mundo reunido em família para a celebração da Páscoa, que era talvez, senão mesmo a festividade judaica mais importante!

Como nota Meyer no seu livro[17], se considerarmos o relato anti-típico de José vendido como escravo para o Egipto pelos seus irmãos, notamos que o nome do irmão que sugere a venda é Judá[18], que a Septuaginta verte como Judas! Mas o que é digno de nota, é que mais tarde José perdoa aos seus irmãos, incluindo Judá![19]

É até digno de nota, no que lhes diz, quando fala da necessidade de eles “não estarem magoados” “nem irados” com eles mesmos, porque tudo aconteceu segundo a vontade de Deus. Ora não é isso também verdade no caso de Judas? Não aconteceu o que aconteceu, de modo a cumprir profecias?

Talvez o seu único erro tenha sido o ter-se matado! Mas mesmo a sua morte não é inteiramente clara. Em Mateus 27:5 diz que depois de lançar as moedas da traição no templo ele saiu e “enforcou-se”, assim sem mais adianto. Já em Atos 1:18, ficamos com a impressão de que se jogou de um penhasco e rebentou cá em baixo. Os apologistas cristãos, procurando conciliar os dois relatos argumentam que ele se tentou enforcar junto uma árvore na beira de um penhasco e que o ramo não aguentou o peso e ele veio esborrachar-se na base do penhasco. É meramente uma hipótese e ela não está em nenhum dos dois relatos!

Portanto, à volta deste homem é só mistérios. Ainda aumentados pelo chamado Evangelho de Judas, um escrito gnóstico que defende que Judas era ainda mais próximo de Jesus do que João e que lhe foi pedido pelo próprio Jesus que o entregasse às autoridades judaicas. Não é inverosímil, pois Jesus numa conversa com eles falara sobre isso como uma certeza e até censurara Pedro, por propor desfecho diferente[20].

E se a tentação é colocar esse Evangelho como um escrito apócrifo e portanto descartá-lo como congeminação apóstata, devo recordar que se calcula que a tradução copta é de 300AD, mas a partir da versão grega de meados do segundo século[21]. Portanto bem perto dos acontecimentos, relembro que o livro bíblico de Revelação foi escrito no final do primeiro século (98AD), começando a circular cópias apenas a partir dessa data.

Ainda relacionado com a sua morte, curiosamente no Evangelho de Judas ele vê a si mesmo, sendo morto à pedrada pelos restantes discípulos. Sem dúvida o mais mal-amado dos discípulos!


[1] Atos 24:15
[2] Atos 6:7
[3] Mateus 27:23
[4] João 13:26
[5]Judas” de Marvin Meyer, pág. 15
[6] João 13:23, 25
[7] João 17:12
[8] Mateus 26:25 (compare com a mesma expressão em Mateus 26:64)
[9] Mateus 26:23; Marcos 14:20; (cumpre o Salmo 41:9)
[10] Mateus 27:3, 4
[12] 1 Coríntios 15:5
[13] Bart Erhamann sugere que ‘os doze’ seria o nome atribuído ao grupo de discípulos mais próximo a Jesus. (“Did Jesus Exist?”)
[14] Zacarias 11:12, 13 (veja-se o cumprimento da profecia de Zacarias em Mateus 27:5)
[15] Lucas 22:3; João 13:27
[16]Commentary on the Old Testament”, 1973, Vol. I, O Segundo Livro de Moisés, p. 12;
[17]Judas” de Marvin Meyer, pág. 21
[18] Génesis 37:26
[19] Génesis 45:4, 5
[20] Mateus 16:21-23
[21] Visto que Ireneu de Lyon cita esse Evangelho numa obra sua de 180AD, o que aponta para uma existência antes dessa data.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O que é uma pessoa espiritual?



Uma pessoa espiritual é aquela que se preocupa com as coisas do espírito, ou seja aquelas que não estão directamente ligadas com o nosso mundo físico, mas são mais abstractas na sua natureza. Basicamente a pessoa espiritual preocupa-se com o ‘porquê’ das coisas. E talvez se preocupe acima de tudo com o porquê mais básico de todos, aquele que pergunta: Porque existimos?

Sim, a busca do sentido da vida e a preocupação com tudo aquilo que emana dessa busca é a característica da pessoa espiritual. Esta busca é uma busca pessoal, singular e íntima. Por isso, há pessoas espirituais e nunca há organizações espirituais.

A espiritualidade não precisa de Deus, ou de uma crença n'Ele. A espiritualidade dimana da procura de sentido e este pode ser achado das mais diversas formas com ou sem Deus.

Um homem de ciência é um homem espiritual? Apenas se a ciência lhe serve como alpondra na sua busca do sentido da vida. Muitas vezes a ciência oferece os materiais que permitem alargar esse campo de busca ou colocar-lhe pontos de reflexão, ela é uma ferramenta e não o fim em si da espiritualidade. A verdade é sempre subjectiva, mesmo quando sobre ela há um amplo consenso. Qualquer construção humana é sempre temporária, pelo que esta busca para o sentido da vida, esta tentativa de responder ao porquê da existência, está sempre sujeita a escrutínio.

A religião é um dos maiores obstáculos à espiritualidade. Ela já não busca, ela exime-se de escrutínio, reclamando-se detentora da verdade. Ela possui o pacote pronto, completo e acabado, só tens de te submeter ao peso da sua verdade, vergar-te à sua vontade avassaladora. O homem religioso e não espiritual, tem resposta pronta para todos os mistérios relacionados com o porquê da existência, o porquê da vida, ou seu sentido. O homem religioso sente-se ofendido quando não aceitam o seu dogma, as respostas prontas na ponta da língua às questões essenciais. Ele acredita que só não vêem a sua verdade por uma maldade qualquer, ou porque não foram ainda, tal como ele, tocados pela bondade divina. A única capaz de permitir que dos olhos cegos dos incréus e opositores caiam as escamas que os impedem de ver. Não lhe passa pela mente, nem por instantes, que a sua explicação, as suas respostas prontas, não correspondam afinal à verdade. Ele solidifica o seu coração, torna-o empedernido para não ceder à dúvida, quando esta é afinal o motor da busca do homem espiritual.

O homem espiritual não precisa ser perfeito. Precisa apenas de ter consciência de si mesmo. Precisa de ser alguém humilde, para estar disposto a ouvir as ideias alheias e aproveitar delas o que quiser, fazendo a sua própria ponderação. E depois de pensar ter achado alguma resposta que considere satisfatória, tem de manter a humildade e acreditar que possa haver uma mais completa. Muitos homens espirituais são apanhados na ratoeira de pensar que a resposta que acharam, a última, é a verdade final. Fecham-se para a necessidade de se continuarem a interrogar. Ao fazê-lo deixam de ser pessoas espirituais.

Talvez alguém diga que assumir isto, é dizer que a verdade é inalcançável! Nada atemoriza mais a religião do que um homem que não aceita que haja uma verdade última e definitiva. Afinal Deus, deve ser o epítome para onde toda a ideia conduz. Não aceitar isso é o mesmo que renegar a Deus. Mas essa é uma falsa ideia.

Como disse Ghandi: “Adoro a Deus como sendo a verdade. Ainda não O encontrei, mas prossigo na Sua busca!” [1]

[1] An Autobiography (1936); also in All Men Are Brothers : Autobiographical Reflections (2005) edited by Krishna Kripalani, p. 63