Judas era um
nome comum em Israel.
A Bíblia por exemplo até tem um pequeno livro, pretensamente
escrito por um Judas, embora não saibamos qual deles é, pois em Lucas e em
Actos, a lista dos apóstolos deixa-nos com dois Judas.
Sobre Judas, as
Escrituras mostram alguma dissonância nos relatos, sendo que quanto mais
recentes são, mais a figura do Judas aparece vilipendiada. Por exemplo no
evangelho de Marcos, diz-se que Judas entregou Jesus às autoridades, mas não se
esclarece quais as suas motivações. Em Mateus, já aparece a motivação, sendo
ganhar 30 moedas de prata, mas fala de algum remorso que o acaba por levar ao
enforcamento. Em Lucas já diz que foi o Diabo que o arrastou para o acto de
trair. E em João ele é chamado de “filho da destruição” e quase equiparado a um
demónio encarnado. No livro de Actos diz que ele cumpriu profecia e que morreu
não enforcado como diz Mateus, mas que rebentou pelos
intestinos.
Não menos
importante, Paulo não dá qualquer importância ao homem como traidor, nem sequer
o menciona por nome, dizendo simplesmente que Cristo foi
“entregue”.
Sabemos que
Judas deve ter vindo de uma família abastada pois a ele foi entregue a
responsabilidade pelas contas dos apóstolos. Ora sendo Mateus um profissional
dos impostos (colector) e habituado a lidar com dinheiros, é estranho que se
tenha preterido este em
favor de Judas , se Judas não soubesse lidar com dinheiro e
registos.
Se as profecias
apontavam para um traidor, alguém dentre a humanidade teria de cumprir esse
infame papel. E portanto, o destino de Judas estava
traçado.
Contudo acho
que isso nos leva a problemas sérios se entendido dessa maneira simplista. Se
Jesus morreu por todos, também morreu por Judas!
Se a morte é o
salário pago pelo pecado. Então, ao morrer, Judas pagou tudo! Pode então aguardar
a ressurreição “tanto de justos, como de injustos”[1].
Alguns talvez
prefiram um Judas morto e enterrado para sempre.
Mas o facto de
ele ter depois rejeitado o dinheiro e se ter suicidado, não indica um Judas
arrependido? Alguém com consciência suficiente para lamentar o que
fez?
O ladrão da
caixa das contribuições, afinal não era assim tão ganancioso, pois foi devolver
as moedas de prata, numa tentativa de remediar o mal, de por fim ao contrato. E
se Judas é execrável, quão execrável são os que lhe pagaram? Contudo, estes
últimos tornaram-se “obedientes à fé”[2]
e alcançaram a salvação e este convivendo tão de perto com o maior homem que já
por cá andou, não foi sensível ao seu amor? Foi capaz de
trair?
Por outro lado,
esta traição é uma coisa estranha. Não estava Jesus pregando publicamente? Para
que precisavam os sacerdotes de alguém que lhes indicasse quem era o Jesus que
procuravam? Não o conheciam sobejamente? E seriam assim tão ingénuos, que não
teriam os seus informadores, que lhe relatariam em pormenores, todas as
movimentações de Jesus? É bom lembrar aqui que a decisão de o matar, foi uma
ideia amadurecida no tempo e não alguma fúria repentina! Portanto mesmo que não
houvesse um Judas, os sacerdotes sempre acabariam por ter uma oportunidade de o
apanhar. Judas só existe para cumprir profecia e não por uma necessidade prática
do propósito dos sacerdotes de matarem Jesus. Embora entenda que foi
conveniente, apanhar Jesus pela calada da noite, sem agitar as multidões como
era propósito dos sacerdotes. Isto porque na altura Jerusalém estava cheia de
peregrinos que tinham vindo para a Páscoa.
Mas após a
Páscoa qual era o problema? As multidões desmobilizam e até acabam por ser
manobradas. Veja-se como gritaram[3],
quando Pilatos tentou libertar Jesus!
Há um conjunto
de pontas soltas à volta de Judas, que precisam ser
resolvidas.
Curiosamente na
última ceia, Jesus parece identificar claramente quem é o traidor. E repare-se
no que Jesus lhe diz: “aquilo que tens de fazer, faze-o depressa!” E o relato
diz que Judas sai. Aliás para Jesus estender o bocado de pão para ele, quer
dizer que Judas se sentava perto do Mestre[4]
e como tal era próximo dele[5],
como se diz de João por exemplo[6].
(Talvez seja esta proximidade que faz com que por inveja, João o demonize no seu
evangelho![7])
Coloquem-se na
pele do Judas por momentos: O Mestre acabou de dizer que há um traidor,
identifica-o[8]
— “o que mergulha o pão no prato comigo”[9]
— diz de seguida para ele fazer o que tem de fazer. A pergunta é: Se fossem
identificados como o traidor, o que fariam? Se ouvissem o Cristo dizer-vos “faz
o que tens de fazer” não ficariam em temor? E como já mencionei o Judas
tinha consciência. Uma consciência que o levou a rejeitar o pagamento.[10]
Mais ainda, a
frase “aquilo que tens de fazer, faze-o depressa!” não combina com um instrutor
amoroso como nos é dado a entender que o Cristo é. Não ficaria de bom tom, Jesus
tentar arrazoar com Judas? Evitar que ele se tornasse “filho da destruição”?
Como diz o personagem interpretado por Nicholas Cage no filme Next[11],
“Cada vez que olhas para o futuro, ele muda, só porque olhamos para ele!” Jesus
podia ter mudado o futuro de Judas.
Curiosamente
Paulo, que é o último a ser escolhido por Jesus de forma directa, faz referência
aos doze[12]
e nenhuma em
especial a Judas. Tem de haver uma explicação! Será que Judas
não traiu mas ‘entregou’ Jesus?
Talvez tudo o
que possamos [13]
censurar a Judas, é o ter querido lucrar com a morte de Jesus, e nem sei, se
mesmo isso é o mais importante para o condenar. As Escrituras até mencionavam a
quantia, pela qual Jesus seria avaliado,[14]
e com o pormenor de que esse dinheiro seria lançado no templo!
Se, como se diz
num dos evangelhos, Satanás tomou conta de Judas[15],
então que culpa tem Judas?
Jesus não
libertou tantos de demónios? Como pode um homem ser culpado de ser tomado pelo
demónio? Jesus, ao libertar pessoas do domínio de demónios, nunca as culpou por
tal situação lastimável! Fazê-lo em relação a Judas , é forçar as
coisas.
Mesmo a sua
saída conforme relatado em João 13:27 a 30 parece estranha: De noite é que o
Judas ia comprar alguma coisa ou dar aos pobres? Demasiado inverosímil! A Páscoa
era comemorada após o pôr-do-sol, portanto entre o lavar dos pés, a refeição e
tudo o mais, certamente seria tarde! Segundo os eruditos o animal era morto
entre as 18 e as 19:20[16],
amanhar o bicho e cozinhá-lo, nunca devia durar menos de uma hora, o mais
provável é ninguém estar a comer antes das 20:00, e no relato estamos já no
final da refeição! Mesmo que a refeição fosse de 30 minutos, Judas nunca sairia
antes das 20:30-21:00. Não acredito que houvesse pobres nas ruas a essa hora, ou
negociantes com casa aberta! Ainda para mais, com todo o mundo reunido em
família para a celebração da Páscoa, que era talvez, senão mesmo a festividade
judaica mais importante!
Como nota Meyer
no seu livro[17],
se considerarmos o relato anti-típico de José vendido como escravo para o Egipto
pelos seus irmãos, notamos que o nome do irmão que sugere a venda é Judá[18],
que a Septuaginta verte como Judas!
Mas o que é digno de nota, é que mais tarde José perdoa aos seus irmãos,
incluindo Judá![19]
É até digno de
nota, no que lhes diz, quando fala da necessidade de eles “não estarem magoados”
“nem irados” com eles mesmos, porque tudo aconteceu segundo a vontade de Deus.
Ora não é isso também verdade no caso de Judas? Não aconteceu o que aconteceu,
de modo a cumprir profecias?
Talvez o seu
único erro tenha sido o ter-se matado! Mas mesmo a sua morte não é inteiramente
clara. Em Mateus 27:5 diz que depois de
lançar as moedas da traição no templo ele saiu e “enforcou-se”, assim sem mais
adianto. Já em Atos 1:18, ficamos com a impressão de que se jogou de um penhasco
e rebentou cá em baixo. Os apologistas cristãos, procurando conciliar os dois
relatos argumentam que ele se tentou enforcar junto uma árvore na beira de um
penhasco e que o ramo não aguentou o peso e ele veio esborrachar-se na base do
penhasco. É meramente uma hipótese e ela não está em nenhum dos dois
relatos!
Portanto, à
volta deste homem é só mistérios. Ainda aumentados pelo chamado Evangelho de Judas, um escrito gnóstico
que defende que Judas era ainda mais próximo de Jesus do que João e que lhe foi
pedido pelo próprio Jesus que o entregasse às autoridades judaicas. Não é
inverosímil, pois Jesus numa conversa com eles falara sobre isso como uma
certeza e até censurara Pedro, por propor desfecho diferente[20].
E se a tentação
é colocar esse Evangelho como um escrito apócrifo e portanto descartá-lo como
congeminação apóstata, devo recordar que se calcula que a tradução copta é de
300AD, mas a partir da versão grega de meados do segundo século[21].
Portanto bem perto dos acontecimentos, relembro que o livro bíblico de Revelação
foi escrito no final do primeiro século (98AD), começando a circular cópias
apenas a partir dessa data.
Ainda
relacionado com a sua morte, curiosamente no Evangelho de Judas ele vê a si
mesmo, sendo morto à pedrada pelos restantes discípulos. Sem dúvida o mais
mal-amado dos discípulos!
[1]
Atos 24:15
[2]
Atos 6:7
[3]
Mateus 27:23
[4]
João 13:26
[5]
“ Judas” de Marvin Meyer, pág. 15
[6]
João 13:23, 25
[7]
João 17:12
[8]
Mateus 26:25 (compare com a mesma expressão em Mateus 26:64)
[9]
Mateus 26:23; Marcos 14:20; (cumpre o Salmo 41:9)
[10]
Mateus 27:3, 4
[12]
1 Coríntios 15:5
[13]
Bart Erhamann sugere que ‘os doze’ seria o nome atribuído ao grupo de discípulos
mais próximo a Jesus. (“Did Jesus Exist?”)
[14]
Zacarias 11:12, 13 (veja-se o cumprimento da profecia de Zacarias em Mateus
27:5)
[15] Lucas 22:3; João
13:27
[16] “Commentary on
the Old Testament”, 1973, Vol. I, O Segundo Livro de
Moisés, p. 12;
[17]
“ Judas” de Marvin Meyer, pág. 21
[18]
Génesis 37:26
[19]
Génesis 45:4, 5
[20]
Mateus 16:21-23
[21]
Visto que Ireneu de Lyon cita esse Evangelho numa obra sua de 180AD, o que
aponta para uma existência antes dessa data.