segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

“Não vades além das coisas escritas”


A expressão acima é uma citação da Bíblia da primeira carta aos coríntios no capitulo quatro e o versículo seis. Estamos a citá-la porque queremos fazer mais um exercício de exegese, como vem sendo habitual aqui neste blog. Convém recordar que a exegese bíblica é um exercício de análise baseada apenas no texto bíblico. Fazemos isso porque a maioria das religiões a aceitam como autoridade, se bem que nem todas lhe atribuam a mesma importância. Movimentos fundamentalistas dão uma importância extrema ao texto bíblico e estabelecem sobre ele interpretações diversas. Como habitual nestas discussões estaremos no universo das Testemunhas de Jeová. Como já dissemos antes, não nos move nenhum intuito de perseguição ao movimento, mas apenas porque temos a oportunidade de o conhecer mais de perto e por outro lado a maioria das pessoas, não ter qualquer noção da teologia das Testemunhas de Jeová. Achamos que este esforço por trazer alguma discussão a uma teologia demasiado opaca só poderá considerar-se meritório quer por parte dos que se debruçam sobre estes assuntos, quer por parte do próprio movimento que no confronto das ideias se vê obrigado a repensar as bases da sua teologia. Infelizmente no seio do movimento a discussão teológica não é estimulada e nota-se ao analisar a sua literatura com atenção que há uma drenagem intelectual, com alguma pobreza argumentativa e um fixar-se apenas numa defesa extrema da autoridade dentro do movimento. O reforço de autoridade por parte do Corpo Governante, a cúpula do movimento responsável pelos éditos e estabelecimento das normas organizativas, tem sido o esforço principal nos últimos tempos. Ora este reforço de autoridade é feito por um argumentativo que se diz basear na exegese bíblica. [1] 

Curiosamente e voltando ao tema, as publicações do movimento quando citam 1 aos Coríntios 4:6 fazem uma curiosa extensão por associação. Para eles não ir além das coisas escritas, não quer dizer apenas ir além do que está escrito na Bíblia, mas também apegar-se ao que está escrito nas suas publicações e não ir além delas! Isto é deveras curioso, este alargamento de autoridade da Bíblia para a autoridade dos seus escritos. 
Defendem esta posição, com a necessidade de haver alguém que esclareça o sentido do texto bíblico, ou seja o texto carece sempre de uma interpretação, mesmo que argumentem que a sua é a mais correcta. Tenho a certeza que todos os movimentos defendem com unhas e dentes a mesma coisa.
Se alguém argumentar que é preciso que alguém nos explique o significado da Bíblia, há que perguntar se quem nos explica detém o verdadeiro significado. Quem nos garante que quem nos explica, pode interpretar melhor do que por exemplo nós pelo nosso próprio esforço? 
Quando alguém clama que tem uma relação de mais proximidade com a mente de Deus, é bom lembrar que isso é sempre uma auto-proclamação! O Corpo Governante das Testemunhas de Jeová auto proclamou-se como o 'canal' pelo qual Deus revela a Sua vontade à humanidade. É de facto uma afirmação ousada, que merecerá, estou certo, post adequado. 

Mas esta auto-proclamação não deixa de ser preocupante. Se Moisés recebeu credenciais inequívocas de que vinha imbuído da autoridade divina pela capacidade de realizar actos milagrosos, como transformar um bastão em serpente, ou por colocar a mão na aba da sua veste a apresentar com lepra e depois pelo mesmo movimento curá-la novamente, parecem-me argumentos de peso que ninguém ousaria de ânimo leve por em causa a autoridade divina do portador. Se isto é assim com Moisés, com muitos outros e em especial nos tempos históricos mais próximos isso nunca se verifica, não havendo nem milagre nem vaticinio que permita alguma confiança na sua proclamação! Infelizmente a história tem mostrado que os que depositam confiança nestes auto-proclamados iluminados, acabam desapontados a mais longo prazo. O vigarista nunca diz que não é sério! Até é capaz de jurar pela saúde da mãe!


Voltemos à questão da exegese. Como é do conhecimento geral, as Testemunhas de Jeová têm uma curiosa posição em relação às transfusões de sangue, que rejeitam liminarmente, se bem que com algumas excepções curiosas. A razão da sua recusa radica na interpretação de textos bíblicos como por exemplo o de Gênesis 9:4 quando Deus ordenou a Noé e sua família acabados de sobreviver ao Dilúvio “Somente a carne com a sua alma — seu sangue – não deveis comer.” As Testemunhas de Jeová dizem que se tratou de um requisito universal porque toda a humanidade descende de Noé e sua família. Como se sabem os judeus têm requisitos sob a matança dos animais que consomem [2] que vem da Lei dada por Deus a eles. Lançando a ponte para o cristianismo agarram no texto de Atos 15:20, onde argumentam que a proibição do uso de sangue se manteve para os cristãos, porque lá diz que os conversos “...se abstenham de sangue...” Mesmo nos tempos medievais esta questão se manteve viva, com a proibição em certas regiões do consumo de morcela, por exemplo. De um ponto de vista exegético a posição quanto à proibição alimentar parece-me plenamente defensável. No caso das transfusões foram largamente além do que está escrito! Não cabia na cabeça de ninguém ao tempo em que essas palavras foram proferidas e assentadas por escrito para a posteridade pensar em transfusão de sangue! Portanto trata-se de um abuso sobre o texto. Ainda mais ao arbitrariamente definirem que fracções são ou não permitidas! Sim porque a cúpula de topo abriu a porta aos seus acólitos poderem aceitar fracções de sangue sem represálias. Esta ideia ainda devia estar mais afastada da mente dos autores bíblicos.

Que é preciso cautela na questão interpretativa é visto na passagem em que Jesus falou da necessidade de comer seu sangue e comer sua carne, na obtenção da salvação [3]. Obviamente Jesus não defendeu o canibalismo, embora ele estivesse ali mesmo que sob a forma de uma ilustração. A bênção do seu sacrifício, embora este fosse literal, com a morte do seu corpo e o derramar do seu sangue, o meio de receber a bênção não precisava de ser literal. Se assim fosse o seu corpo e o seu sangue seria insuficiente para salvar toda a humanidade.
Claramente os que tropeçaram tiveram problemas interpretativos se bem que partissem de axiomas verdadeiros, como aquele que dizia que o canibalismo era inaceitável. 
Curioso que os defensores de certa interpretação sempre acusam os de interpretação diferente de "falsos profetas" e de "falsos instrutores".

Exageros interpretativos como os que proíbem os festejo do aniversário, deviam levar à proibição se aplicados da mesma forma à proibição de se ter cão. Curiosamente a bíblia fala de pastores mas nunca associa a estes a utilização de cães. As Testemunhas de Jeová defendem que os únicos relatos na Bíblia de aniversários os colocam sob uma luz negativa e sempre celebrados por pagãos, e assim sendo interpretam que não os devem celebrar. Curiosamente a Bíblia, quando fala de cães é sobre uma luz igualmente negativa mas não aplicam o mesmo argumento e não objectam que os crentes tenham cães como animais de estimação. Faço notar que isto é uma desonestidade intelectual.
Os problemas interpretativos têm às vezes algumas curiosas reviravoltas. Os Testemunhas de Jeová sabem que a ciência rebate seguramente a ideia de um Universo feito em seis dias de 24 horas, ou até mesmo de uma Terra feita nesse curto período. Por isso, têm uma curiosa interpretação dos dias criativos em Génesis. Segundo eles, um dia para Jeová são mil anos [4], dá-lhes o balanço para interpretar os 'dias' de Génesis no intervalo que lhes é conveniente. Como Jeová depois de ter criado o mundo, passou a descansar no chamado 'sábado', e visto que Deus ainda está a descansar e segundo eles passaram seis mil anos e ainda faltarão os mil anos do reino milenar [5], então interpretam que cada dia criativo teria de ter durado 7 mil anos. Portanto os seis dias criativos serão no total 42 mil anos. Mesmo assim do ponto de vista cientifico, manifestamente insuficiente.
Do ponto de vista da exegese bíblica contudo, também não é honesto!
Afinal o texto de Génesis não dá azo ao alargamento temporal intencionado pelas Testemunhas de Jeová numa tentativa de conciliação com a ciência, ou querendo parecer menos fundamentalistas que a concorrência.
Se repararmos com atenção no texto de Génesis relativamente à criação, notamos com facilidade que cada dia criativo termina com a expressão "...e veio a ser manhã e noitinha do dia..." tal [6]. Portanto o único período de tempo com manhã e noitinha é um dia de 24 horas. A sermos exegeticamente honestos a explicação das Testemunhas de Jeová não é correcta.
Terão de arranjar outra interpretação.
Sugiro-lhes uma interpretação quântica em que Deus demora 24 horas a fazer o colapso das ondas de probabilidade que originaram o Universo. [7] É uma interpretação que pode conciliar a exegese e a ciência.

[1] Por favor podem ver as análises que já fizemos sobre esse tema como por exemplo o post anterior a este.
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Kosher
[3] O relato pode ser lido em no Evangelho de João 6:53-60, 66
[4] 2 Pedro 3:8
[5] Revelação 20:6
[6] Génesis 1:5, 8, 13, 19, 23, 31
[7] Aconselho o livro “Deus não morreu” de Amit Goswami da Planeta Editora (2009)