sábado, 12 de agosto de 2017

A Ilusão Permanente


Dependemos, para a nossa compreensão do mundo, dos sentidos. Sendo estes por sua vez, interpretados pelo nosso cérebro. Este por sua vez atribui significado à nossa perceção permitindo construir uma realidade. O primeiro ponto é que esta realidade é só nossa, fazendo de cada um de nós uma ilha. O sermos uma espécie social, que desenvolveu linguagem é que nos permite partilhá-la. Isso dá-nos a primeira ilusão: a de que vivemos uma realidade comum.
O segundo ponto é que a forma como construímos a realidade em nossa mente, é apenas uma colagem fragmentada do que os nossos sentidos fornecem como matéria-prima para a sua construção. A quantidade de informação que nos chega através dos sentidos seria suficiente para assoberbar qualquer sistema de recolha de dados. Portanto o que chega ao cérebro para processamento já foi filtrado antes. Isso constitui a segunda ilusão: A nossa perceção nunca é completa, mas constitui-se de fragmentos.
O terceiro ponto é que mesmo o que é filtrado provindo dos sentidos nem sempre é produto do mundo físico, mas antes uma construção que o cérebro gera para compensar os hiatos. Existem nas nossas retinas um lugar que é cego, precisamente onde esta se liga ao nervo ótico. Contudo o nosso cérebro dá-nos imagens do que se vê sem um ponto negro, cego. Quer acredite, quer não, o seu cérebro “construiu” a parte que o olho não vê e não somos capazes de nos dar conta disso.
Fazemos por nos ver num continuum temporal, por isso podemos confabular para preencher as memórias que não temos. O que de fato fazemos constantemente, construindo uma narrativa pessoal em que inserimos os outros de modo a que haja pelo menos a ilusão de coerência, de continuidade. Mas são memórias criadas e não resultaram de experiência.
Há assim uma obrigação honesta, que é de reconhecer que não sabemos o que é a realidade. Na tentativa de ultrapassar as nossas mais do que óbvias limitações, construímos modelos da realidade. Os modelos são construções teóricas, conceitos que nos permitem fazer uma ideia do que a realidade poderá ser. O que quer dizer, em sincera admissão, que nunca teremos a certeza.
Nem sequer temos a certeza de quem somos, já que possivelmente os outros não nos veem como pensamos ser. Assim há um exercício de humildade que é necessário ter ao considerar o que pensamos ser. [1] Até porque o que somos agora, pode ser diferente do que somos amanhã. [2]
A pesquisa instantânea através dos motores de busca como o Google dá-nos a ilusão do conhecimento. Num instante temos a informação sobre tudo o que quisermos, mas isso não faz de nós um especialista. Ler jornais também já não nos põe ao corrente dos factos, mas antes filtra-os e manipula-os em função de ideologia ou de interesses escondidos. A ética no rigor esvai-se na maré de “fake-news”, a ponto de ser uma questão de fé em que notícias acreditar. E como em qualquer outra fé o desapontamento pode estar ao virar da esquina.
Se no mais essencial temos um deficitário conhecimento, como nos podemos lançar na presunção da teologia e colocando mais uma incógnita, ou seja Deus, afirmar que sabemos o que é a realidade e mais ainda, como esta veio à existência.
Talvez a teologia não passe de uma elaboração cerebral, na sua inclinação para a efabulação. Mas acho que resulta na incapacidade que as crianças demonstram em compreender a morte física, mas não a psíquica. Para elas a consciência nunca morre, é eterna. E para nós adultos custa conceber uma realidade onde não estamos. [3]
Gostamos de ser enganados mesmo sabendo que o estamos a ser. Quem nunca assistiu a um espetáculo de magia que atire a primeira pedra! [4] Ou quem nunca viu um filme!
Gostamos de cinema, em que um conjunto de imagens paradas nos dá a ilusão de movimento. E estas imagens em planos cortados sucessivamente contam-nos uma história, como a nossa memória faz, em parcelas, contando a nós mesmos uma história que parece contínua.
Mergulhamos em ilusão. Vivemos sempre debaixo de três ilusões:
A de pensar que conhecemos a realidade.
A de pensar que sabemos quem somos.
A de pensar que somos eternos.
As duas primeiras preparam-nos para a última, sendo esta última alimentada em força, pela religião.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Progresso Espiritual Cristão



Vamos abordar em termos exegéticos aquilo que significa ser cristão e como decorre o progresso espiritual de alguém que se diz cristão. A abordagem é necessariamente exegética porque é inútil discutir se faz sentido ter ou não uma religião ou acreditar em Deus, para aquele que já é crente, assumindo com seriedade e sinceridade a sua crença.
Portanto em termos puramente baseados nas Escrituras (sola scriptura), as mesmas em que o cristianismo assenta e a partir das quais se desenvolveu, vamos falar de progresso espiritual.
O progresso espiritual não pode ser medido em termos do que alguém aparenta, ou seja, pelo que faz. O que faz pode ser uma ilusão, uma aparência de espiritualidade, como ocorreu com o farisaísmo tão prontamente denunciado pelo Cristo. Se é verdade que "a fé sem obras está morta"[1], não é menos verdadeiro que fazer "sem amor, é como um címbalo que retine"[2] sendo a obra então um vazio.
O progresso espiritual pode antes medir-se naquilo em que modifica o indivíduo, no seu íntimo e na sua relação com os outros e a restante criação. Se essas relações se tornam mais sólidas, mais nítidas de intenção e de propósito, há um claro progresso. Outra medida, é a forma como o indivíduo se lê em relação a si próprio. Ou seja, se ele sente essas mudanças como um progresso, uma iluminação. Se essa progressão lhe dá contentamento, mesmo que não lhe traga felicidade. Porque, afinal, a verdade pode revelar-se cruel. Ou crua.
A espiritualidade das aparências veicula a literalidade e o formalismo.
Ou como menciona o erudito Johannes H. Scholten: "Os profetas dão lugar à sinagoga, a proclamação ao vivo da verdade à erudição,  o espírito de liberdade à servil sujeição à Escritura e à tradição. "[3]
Em suma, trata-se de cercear a relação entre Deus e o homem na sua essência mais básica. A espiritualidade passa a ser um mero paramento, um teatro ritualizado. Esvazia-se.
Cristo vem recuperar a relação pessoal com Deus, encher a prática de um sentido prático, desvalorizando o ritual, fazendo da espiritualidade uma alavanca para um mundo melhor: Ama a Deus com o melhor de ti mesmo, mas depois de por isso seres tu mesmo melhor, "ama o teu próximo como a ti mesmo"[4].
Esta mantra cristã deve ecoar permanentemente no crente, fazendo-o re-ganhar "a liberdade"[5] que é o que o espírito de Deus produz. Uma liberdade que permite a proclamação da verdade. Verdade esta que resulta de uma busca individual, não manietada pela erudição, nem pela Escritura, nem pela tradição. A proclamação da verdade é afinal e tão somente um testemunho, resultado de uma experiência pessoal de âmbito profundo. É o reabilitar do passado, o papel singular do profeta. Do que mesmo que a contra-gosto como Jeremias não pode ficar calado, face à impelência do espírito[6].
A verdadeira espiritualidade é dinâmica e infunde coragem ao indivíduo. Projecta-o a uma dimensão maior do que ele próprio sem contudo lhe roubar a humildade e a modéstia. Se ganha poder, este poder é de Deus e visa a sua glória e não uma terrena. É a máxima "não temais quem mata o corpo, mas quem pode destruir a alma"[7].
Os profetas visavam os melhores interesses daqueles a que falaram. Visavam um arrependimento, uma mudança de atitude ou uma atitude que permitisse aos seus ouvintes serem bem sucedidos. No fundo parece ser esse o interesse de Deus. Cristo faz um extenso discurso sobre como ser feliz no seu famoso Sermão do Monte.
Contudo, muitas vezes, num paradoxo fascinante, os profetas são vítimas do seu amor a Deus e ao próximo. Cristo denúncia ao dizer que os de espiritualidade vazia e servil são afinal os descendentes dos "que mataram os profetas", mesmo que agora lhes cuidem das sepulturas, mas sem genuíno arrependimento, sem mudança de atitude[8].
Crescer em sentido espiritual afigura-se então uma espécie de idade adulta da espiritualidade. Uma que assegura a genuinidade da palavra um "sim que significa sim, e um não um não"[9],  uma experiência com Deus tão intensa que permite o testemunho, não como ritual paramentado e decorado, mas como água fresca e pura que leva a dizer "homem algum falou como este"[10] ou quando se sugeriu aos que com ele privaram que se fossem, disseram "para quem iremos?"[11]

[1] Tiago 2:26
[2] 1 Coríntios 13:1
[3] "A Comparative View of Religions"
[4] Marco 12:30, 31
[5] 2 Coríntios 3:17
[6] Jeremias 20:9
[7] Mateus 10:28
[8] Mateus 23:29 a 31
[9] Mateus 5:37
[10] João 7:46
[11] João 6:68