quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Diferença entre apostasia e novo entendimento



Uma prova em como o pensamento religioso é subtilmente pervertido, é a acusação por parte da ortodoxia sobre os que a contestam. A organização religiosa representada pelo escalão superior da sua hierarquia, assume-se como o detentor legítimo da ‘verdade’ e só ele é legitimado para introduzir qualquer alteração. Qualquer proposta sequer de reflexão vinda dos escalões mais baixos é considerada perigosa e olhada com suspeição.

A igreja católica está cheia de exemplos desses, por exemplo, quando condenou Giordano Bruno[1] à fogueira, apenas porque este defendia a pluralidade de mundos, ou de forma ainda mais violenta com o massacre dos cátaros[2].

De modo geral a religião organizada é profundamente alérgica a qualquer ideia que entenda como contrária à sua! Sim, é tão preocupantemente doentio que tudo depende de uma percepção daquilo que entende como contrário! De facto, uma ideia que levou alguém a ser considerado herege ou apóstata, pode nos anos seguintes, ser considerada perfeitamente inocente, ou pelo menos não ceifar a vida de ninguém. Por exemplo, qualquer católico pode sem medo de ser excomungado dizer que acredita na pluralidade de mundos habitados.

Seria contudo muita ingenuidade nossa, pensar que o pensamento religioso evoluiu. Pelo contrário ele apenas está submerso pronto a despontar a qualquer oportunidade mais favorável. O pensamento religioso é por natureza intolerante a uma ideia contrária e tem sempre tendências hegemónicas. Basta pensar na própria Bíblia que afiança em Efésios 4:5, 6 de que há “…uma só fé, um só baptismo, um só Deus…”

Onde vemos hoje sinais da intransigência do pensamento religioso e da sua intolerância face a qualquer ideia contrária? Se isso parece atenuado ou ‘submerso’ no seio das grandes religiões, está bem vivo no fundamentalismo cristão, fenómeno fortemente americano e que por hegemonia cultural do Império tem sido espalhado globalmente. A intransigência sente-se agudamente com a proposta de queima do Corão[3] ou por acções homofóbicas doentias[4].

E se estas expressões são claras e evidentes por si mesmas, outras há que primam por uma subtileza incomparável, mas não deixam de ser igualmente perniciosas. Mais uma vez me reporto às Testemunhas de Jeová e faço-o porque o seu combate aquilo que entendem ser apostasia, cobra um pesado tributo aos supostos apóstatas. As Testemunhas costumam expulsar dentre a sua comunidade aqueles que não aceitam a ortodoxia do movimento. Mesmo que o apóstata consiga provar o seu entendimento com base na exegese bíblica[5]! Isto parece contraditório com a sua própria posição oficial que diz reconhecer a autoridade superior da Bíblia. Talvez o que queiram realmente dizer, seja que aceitam como autoridade superior a sua interpretação da Bíblia. É um exercício muito comum em todas as religiões e em particular das judaico-cristãs…

Mas o caricato nas Testemunhas de Jeová é que a sua interpretação de apostasia pode coincidir na prática com aquilo que denominam ‘novo entendimento’. Isto é, se numa altura certa interpretação foi considerada apóstata e até levou à expulsão dos seus membros que a defendiam na altura, num passe de mágica intelectual, a mesma interpretação passa a ser louvada como um ‘novo entendimento’ e aceite como inspiração divina que gradualmente conduziu a uma maior ‘luz’. Vou abordar nessa perspectiva dois casos: O do Serviço Cívico e o entendimento sobre o significado do ‘fermento’. Contudo poderia citar pelo menos mais meia-dúzia de situações.

Serviço Cívico
Elogiavelmente as Testemunhas de Jeová mantêm uma posição de neutralidade em relação aos assuntos políticos do mundo que as faz negar-se intransigentemente a participar no esforço de guerra de qualquer nação. Não são pacifistas, pois acham legítimo que Deus trave guerra com os seus inimigos, contudo recusam-se a matar qualquer outro humano. Assim tem sofrido bastante por esta sua atitude corajosa, sendo que nalguns países muitos ainda estão presos por recusarem a sua participação no exército. Alguns foram mesmo mortos por esta sua atitude. Felizmente o mundo evolui e muitos governos legislaram em favor destas posturas e aboliram a obrigação da prestação de serviço militar ou criaram serviço substituto, normalmente denominado de ‘serviço cívico’. Face a esta mudança, seria de esperar que as Testemunhas a considerassem muito bem-vinda. Mas não. Encararam o ‘serviço cívico’ como equivalente a prestar serviço militar! Isto abriu uma incompreensão em primeiro lugar da parte dos juízes responsáveis por conceder o estatuto de ‘objector de consciência’ que não entendiam a recusa de alguns mancebos Testemunhas em prestar ‘serviço cívico’. E por parte de alguns mancebos Testemunhas uma incompreensão como justificar a sua recusa, visto que se aceitassem não viam nenhuma violação de nenhum princípio bíblico!

Qual foi o resultado? Alguns mancebos foram parar à prisão por se recusarem aceitar serviço cívico e outros foram desassociados pela organização porque aceitaram. Em qualquer dos casos, é bom que se note, houve prejuízo para os mancebos. E tudo porquê? Por uma postura rígida e intransigente da organização, uma espécie de braço de ferro com o poder político.

Os jovens que haviam aceite o serviço cívico, foram todos desassociados pela organização. Esta é a medida mais dura que têm para os membros que consideram apóstatas ou prevaricadores. Neste caso, consideraram que ao não aceitarem a orientação da organização neste particular, tinham apostatado. (Há aqui envolvido um conjunto de tecnicalidades, que não quero desenvolver…)

Algum tempo depois[6], saiu um ‘novo entendimento’ que afirmava que agora o ‘serviço cívico’ podia ser aceite, pois havia base bíblica para isso! Será que face a esse novo entendimento os que anteriormente haviam sido desassociados por terem entendido isso, antes da organização, foram de imediato reintegrados? Não! De modo nenhum, ainda continuaram a ser olhados como elementos ‘fracos’ de espiritualidade duvidosa.

E os outros que foram com base no velho entendimento presos, foi-lhes pedida desculpa por terem passado por essa provação? De modo nenhum! A organização considerou que nenhum destes foi prejudicado! Felizmente, tanto quanto sei, nenhum foi fuzilado por recusar ‘serviço cívico’, se o tivesse sido, a organização teria sangue nas mãos neste momento!

Fermento
O segundo caso é mais recente e prende-se com um problema de exegese. As Testemunhas de Jeová defendiam que quando a Bíblia se refere a fermento, este deve sempre ser encarado como negativo, ou seja traduz a ideia de corrupção, de algo impuro ou aviltado. Contudo, recentemente houve um ‘novo entendimento’[7] e foi reconhecido que nem sempre isso ocorre e que algumas vezes apenas se refere a um processo natural.

O problema é que isso era uma velha quezília de 30 anos[8], quando J.H.Paton defendeu a mesmíssima posição e por esse ‘crime’ sofreu a desassociação! Será que a sua memória foi reabilitada? Deus nos livre! A organização é demasiada ‘perfeita’ para ter que pedir desculpas ou admitir que errou.

Mas o que tudo isso tem a ver com o tema? Simplesmente o seguinte: Quando o exercício de exegese vem de um simples membro é apostasia, quando vem da Organização é ‘divinamente inspirado’ e deve ser aceite sem reservas por todos!

Assim o que determina se alguma coisa há-de ser apostasia ou ‘novo entendimento’ é apenas o acto arbitrário de quem o classifica!

Afinal depende apenas de que lado se está da linha…




[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Giordano_Bruno
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzada_albigense
[3]http://www.donodanoticia.com/pastor-queima-alcorao-nos-eua-gera-protestos-no-afeganistao-104007.html
[4] http://www.msnbc.msn.com/id/9102443/ns/us_news-life/t/anti-gay-church-protests-soldiers-funerals/
[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Exegese
[6] “A Sentinela” de 1/Maio/1996 p.20
[7] “A Sentinela” de 15/Julho/2008 nota de rodapé na página 17
[8] “A Sentinela” de 1/Junho/1976 p.335 a 348

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Pensamento Religioso

Gostamos de pensar que somos indivíduos evoluídos e que estamos bem para lá das superstições religiosas ou outras de teor semelhante. A ideia de um mundo metafísico é veementemente rejeitada, como uma posição pouco ou nada racional.

Um pouco de humildade não faz mal nenhum, de modo a colocar as coisas na devida perspectiva. O pensamento religioso não surgiu apenas por surgir, ele obviamente respondia a um conjunto de necessidades humanas e foi por isso que se manteve até aos dias de hoje.

A atitude de acreditar em irracionalidades ainda se mantém. Os economistas acreditam em coisas misteriosas como ‘forças de mercado’, ou em irracionalidades como ‘crescimento’ infinito, mimando em certo sentido o que se passa com a religião [1].

Mesmo os cientistas tidos como insuspeitos nesta questão de racionalidade e objectividade se deixam enredar em fraudes e manipulação, como aconteceu com o crânio de Piltdown [2] ou os recentes escândalos sobre as alterações climáticas.

A atitude de veneração, que no pensamento religioso é canalizada para a apreciação da vida dos santos e a esperança que eles intervenham a nosso favor, é no mundo actual canalizada para a admiração de personalidades e também esperamos que estas nos tragam uma vida mais feliz ou menos miserável. Ou até mesmo canalizada para a admiração da ciência e que esta se converta qual mágica varinha de condão, na resolução dos nossos problemas.

A adoração de figuras políticas, elevadas a figuras míticas nos países ateus é outro exemplo. Mas também é alimentada em posters de Einstein, ou na confiança dogmática de que a ciência contém a chave da felicidade [3].

Afinal tudo não passa ainda de resquícios do pensamento religioso.

Há até agora uma forma de proselitismo ateísta que se confunde com o proselitismo religioso e enferma dos mesmos males. O que acredita em algo metafísico é rotulado de supersticioso, irracional, dogmático e atrasado. [4]

Esquecemo-nos que o pensamento religioso foi uma necessidade humana. Um recurso que a nossa tendência para o agenciamento nos trouxe.

Será que o pensamento religioso não é apenas uma estratégia evolutiva, para nos fazer sentir bem e como tal dar-nos uma vantagem competitiva?

Sabemos agora que somos mais ou menos religiosos, consoante a nossa actividade dopamínica no lobo central [5]. É a dopomina que está por trás das nossas paixões e afecta a nossa vida sexual. Portanto pode dar-se que assim como sentimos prazer na propagação dos genes (sexo), sentimos prazer em acreditar que há uma outra realidade superior, metafísica.

Aceitamos que a necessidade de compreender o sentido da vida é suficientemente importante para ocupar as mentes de filósofos, mas já não temos a mesma atitude para com os pensadores religiosos, os teólogos. E enquanto os filósofos ainda debatem a questão, os religiosos já lhe responderam apaziguando as nossas angústias. Qual é então o mais útil?

Esta necessidade premente de respostas às grandes interrogações do Homem, foi o que gerou o pensamento religioso. Chamamos a esta necessidade de espiritualidade. A religião procura satisfazer essa necessidade, embora e infelizmente na sua vasta maioria, tenha contribuído para a sufocar. A ciência pode trazer uma resposta mais lúcida, mas ainda assim será sempre insuficiente. Não é o modo como o mundo trabalha que satisfaz a nossa espiritualidade. A espiritualidade é muito mais exigente, porque quer saber os porquês.

O nosso actual mundo desprovido de deuses e da sua sobrenaturalidade sublima-se num retorno à natureza ou no fascínio por histórias fantásticas [6]. O moderno capitalismo converteu a necessidade espiritual numa “filosofia da futilidade” e “ausência de propósito de vida” que alimenta o consumismo [7], convertendo a procura de sentido, na procura e aquisição de bens.

Por isso, enquanto as grandes questões que são: “Donde viemos? Porque estamos aqui? Para onde vamos?” permanecerem e não forem satisfatoriamente respondidas, o pensamento religioso terá uma razão para existir.

[1] “When Religion Becames Evil” por Charles Kimball, p.17, 2008
[2] http://en.wikipedia.org/wiki/Piltdown_Man#Exposure_of_the_hoax em 19/Jul/2011
[3] Jaques Fresno, por exemplo.
[4] Richard Dawkins e Michael Shermer, por exemplo.
[5] “Where God and Science Meet: How Brain and Evolutionary Studies Alter Our Understanding of Religion” – Volume 2, Capítulo 1, pág. 10.
[6] Harry Potter ou Ufologia por exemplo.
[7] “Hegemony or Survival – America’s Quest for Global Dominance” por Noam Chomsky, p.76

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O que nos faz felizes?

A felicidade não é algo tão difícil de definir que não possa ser estudado objectivamente. Alguns académicos de ramos tão diferentes quanto a psicologia, as neurociências, a economia e a filosofia têm contribuído para que esta questão, sobre o que realmente nos faz felizes. Finalmente é possível uma resposta satisfatória há pergunta: O que nos faz felizes?

Direi de imediato que há quatro coisas que contribuem para a nossa felicidade:

1.      Termos pouca escolha
2.      Senso de pertença a um grupo
3.      Acreditar numa causa maior
4.      A ideia que controlamos a nossa vida

Passarei agora a desenvolver cada um destes aspectos:


Termos poucas escolhas. Contrariamente ao senso comum, não é na abundância que encontramos a felicidade. Somos muito mais felizes quando as nossas escolhas são bem limitadas. Se tivermos muita coisa para escolher, essa abundância apenas acrescenta angústia. [1] Também as escolhas que fazemos devem ser o mais definitivas possível, sem a hipótese de podermos voltar atrás, mesmo se eventualmente acharmos que fizemos a escolha errada. Também em circunstâncias infelizes, somos capazes de fabricar a felicidade que nos falta. É por isso que alguns indivíduos conseguem ser felizes em circunstâncias inimagináveis como por exemplo, campos de concentração. [2]


Senso de pertença a um grupo. Partilhamos mais de 97% dos nossos genes com os chimpanzés, o que alguns interpretam como prova da nossa ancestralidade comum. Os chimpanzés são animais sociais. Os animais sociais têm certas vantagens em termos de sobrevivência que animais menos sociais não têm. Alguns acham mesmo que a inteligência só se desenvolve entre espécies sociais. Seja como for, todos nos sentimos melhor quando nos sentimos enquadrados num grupo, como pertencendo a esse grupo e o nosso papel nele está claramente estabelecido. O primeiro grupo a que pertencemos é a família, depois pode ir-se alargando. As religiões menores em número de membros procuram alimentar este aspecto reforçando os laços entre estes, de modo que este senso de pertença seja bem forte.


Acreditar numa causa maior. Quando a nossa vida não parece limitada a uns poucos de anos à superfície do planeta para ser esquecida umas dezenas de anos após a nossa morte, esta adquire um sentido. É importante para a nossa felicidade acreditar que fazemos parte de um destino, de algo que nos transcende, mas do qual fazemos parte. Toda a esperança tem na sua base esta fé, este acreditar numa causa maior.


A ideia que controlamos a nossa vida. Se por alguma razão percebermos que as nossas escolhas não determinam o rumo da nossa vida, isto é, que ao invés de controlarmos os acontecimentos, são estes que nos controlam, isso tem um efeito pernicioso e até mesmo letal, em nós. Está intrínseco aqui a noção de poder. Para que a vida nos pareça merecer a pena ser vivida, temos de ter poder, alguma sensação de poder. [3]
Algumas ‘mitologias’ contemporâneas sobre o que nos faz felizes:


Ser rico. Não há nenhum estudo que prove que quanto mais rico se é, mais feliz se é. O que nos faz felizes mesmo é sermos todos classe-média.


Ter filhos. Ter filhos não contribui para a felicidade. Aliás estudos parecem comprovar antes o contrário: Os casais ficam infelizes com o nascimento do primeiro filho e voltam a reganhar felicidade quando o último filho sai de casa!


Sou único! Pensar que é especial ou único é apenas uma ilusão sua. Se o fosse as sondagens não serviriam para absolutamente nada! Contudo não é assim, porque somos todos muito iguais uns aos outros.


[1] “The Paradox of Choice: Why Less Is More” por Barry Schwartz
[2] “Stumbling on Happiness” por Daniel Gilbert, Capítulo 8
[3] Como se depreende a ânsia pelo poder revela uma insegurança fundamental!

sábado, 14 de maio de 2011

O que nos faz humanos?

Ao olharmos para o nosso planeta, damos conta da sua singularidade no espaço cósmico. Vivemos no único planeta em que há vida. Não discuto aqui a possibilidade de existir vida em outro lado do Universo, mas até agora isso é uma mera hipótese.

Há vida aqui na Terra, por milhares de anos, se é que o tempo é linear e corre sempre igual [1]. Existiram muitas formas de vida, que apareceram e desapareceram. Darwin, propôs que toda a vida não passa de múltiplas faces de uma primeira centelha, que aconteceu num passado remoto. A religião diz que essa centelha foi divina. Os evolucionistas dizem que foi uma probabilidade. Por isso, na maior parte a religião considera a evolução um anátema, porque reduz Deus a uma probabilidade estatística, retira-lhe personalidade. A maioria das religiões fundamentalistas luta contra a teoria da evolução. A Igreja Católica aceitou a teoria como compatível com a fé cristã [2]. Passou a interpretar o relato de Génesis como uma etiologia, uma tentativa de explicar a causa da existência da vida. Contudo o debate entre os que aceitam o método científico e os que seguem os seus dogmas religiosos, continua, numa espécie de diálogo de surdos.

É visível assim que responder à questão “O que nos faz humanos?” não é fácil. As dificuldades começam logo na origem do Homem. Somos afinal uma longa cadeia de acontecimentos evolucionários ou resultado de uma entidade inteligente?

Somos o único mamífero bípede[3] e o nosso cérebro é grande, embora para efeitos de inteligência isso não seja significativo. Mas não é o bipedismo nem a inteligência que nos faz humanos ou será? Etologistas, que estudam o comportamento animal, reconhecem comportamento inteligente em outras espécies, e reconhecem também capacidades e características que estávamos habituados a considerar como um exclusivo nosso [4].

Portanto, não sabemos sequer se outras espécies não se colocam as mesmas interrogações que colocamos a nós mesmos: Qual o sentido da vida? De onde viemos e para onde vamos? Nem mesmo sabemos se o sentimento religioso que nos acompanhou desde os tempos das cavernas até agora, não existirá sobre outras formas nas outras espécies. O que é claro, é que desaparecem com rapidez as barreiras que nos separavam e parece cada vez mais haver um contínuo de vida entre as diversas espécies.

Daí que a questão seja tão premente: O que nos faz humanos?
O homem religioso dirá provavelmente coisas como: Só o homem possui uma alma. Contudo nem todas as religiões acreditam que o homem tenha uma alma. Talvez digam então que só o homem tem uma relação com Deus. Embora não possamos saber se as outras espécies têm ou não um Deus, temos de nos perguntar: Com qual Deus? Afinal só entre as denominações ditas cristãs, os conceitos sobre Deus, variam imensamente! Uns acreditam que Jesus é Deus, outros que faz parte de uma Trindade e outros acham que é apenas filho de Deus. Não vale pena portanto considerar sequer religiões com outros candidatos a Deus ou Deuses.

Sendo que não há consenso relativamente às nossas origens, ou até mesmo à nossa relação com Deus ou Deuses, haverá algo que nos una? Fará sentido buscar o sentido da vida, quando ela é tão breve? Que sentido terá acumular conhecimento, se esse conhecimento apenas se traduzir numa infinita angústia? [5] Não terá mais sentido usufruir a vida, buscar a felicidade?

Alguns argumentam que se deve consagrar o direito à felicidade, como um direito básico. De facto, se o conhecimento é o caminho interminável, a procura da felicidade pode ser um caminho aprazível. E quando finalmente esta aventura de existir terminar, terá valido a pena, argumentam. Para o Homem religioso estes pensamentos são hedonistas e absolutamente condenáveis. A felicidade do Homem é alcançada pela sua relação com Deus que a mais das vezes implica a negação da sua própria vontade e dos seus desejos. Contudo, no Sermão do Monte, Jesus apenas falou da felicidade humana. E que sentido teria uma relação com Deus, se não se traduzisse numa promessa de felicidade plena no futuro? Afinal a religião é apenas um hedonismo [6] adiado.
E se a busca da felicidade é o que faz de nós humanos, então a pergunta que de seguida se torna mais premente é: “O que nos faz realmente felizes?”

[1] Einstein assegura que não, num referencial acelerado o tempo decorre mais devagar.

[2] http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRN1641023720080916

[3] Outros mamíferos têm deslocação bípede, mas esta é ocasional ou como no caso dos cangurus e afins é saltitante.

[4] Recomendo a leitura dos livros de Jonathan Balcombe, “Second Nature” e “Pleasurable Kingdom”.

[5] A Bíblia diz em Eclesiastes 1:18: “muita sabedoria, muito desgosto; quanto mais conhecimento, mais sofrimento”.(CNBB)

[6] O termo pode incluir sentidos muito diversos relativamente a como o prazer ou a felicidade pode ser alcançada.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Educação Superior


Penso que não devia haver valor mais grato de prezar do que o conhecimento. É graças ao conhecimento que sabemos mais do que nunca sobre a natureza e sobre nós mesmos. Ainda que, no percurso, nem sempre gostemos do que vamos conhecendo. Achamos tão importante o conhecimento que o medimos como factor de progresso. Não nos passaria pela cabeça agora proibir as crianças de irem à Escola e de aprenderem a ler e a contar. Temos no nosso país ainda os reflexos de um tempo em que ir à Escola era privilégio apenas de alguns. Infelizmente nem todos tiveram essa sorte e ainda temos muitos analfabetos, felizmente cada vez menos.
Reconhecemos que é necessário como factor de progresso, que os nossos jovens possam progredir nos estudos, e que se se mostram capazes avancem para o ensino superior, universitário. É verdade que nem todos terão a vocação ou a capacidade de aí ascender. Mas quando há, não queremos sequer que o factor económico nos impeça de ter mais um engenheiro, ou um médico, ou professor.

Se alguém, de qualquer quadrante da sociedade viesse censurar a busca do conhecimento e falasse contra a educação superior, como encararíamos isso? É essa reflexão que quero trazer até vós.
Pode haver motivos que levem alguém a censurar a busca do conhecimento. Por exemplo alguns lamentam que hoje dominemos o átomo e sejamos capazes de produzir centrais nucleares ou bombas atómicas. Outros lamentam que o conhecimento nos tenha arrastado até à beira da extinção. E ainda hoje muitas religiões sentem um profundo incómodo com a visão de uma natureza evolutiva. Refutam o conhecimento não com nova evidência, mas com um empedernido dogmatismo fechado para qualquer tentativa construtiva de raciocínio.

Face aos desafios o pensamento religioso encapsula-se, recua para uma posição defensiva, ou se encurralado ataca com ferocidade. Mas é apenas uma instintiva defesa, sem qualquer ponderação quanto às consequências. O homem religioso nunca cede à dúvida, tem sempre e somente certezas! Ele não pergunta, e quando pergunta é inquisidor. Ele não busca o conhecimento, ele tem a verdade! Ele não busca Deus, ele conhece Deus, os seus pensamentos e as suas vontades. Se alguém pensa diferente dele, é porque está de alguma forma condenado. O Deus que a todos ama, deixa de amar aquele que não partilha a sua fé, e a única recuperação possível é converter-se!

Como qualquer pessoa razoável pode compreender, o raciocínio do homem religioso é falho, atrever-me-ei a dizer que é doentio, num grau de subtileza incomparável. O amor ao próximo cede com facilidade lugar à rejeição ou a um paternalismo manipulador. Para o homem religioso o Universo termina nos limites da sua fé, e nenhum telescópio ou instrumento científico lhe permite ver para além desse horizonte, que impôs a si mesmo, submisso na crença.
Tal atitude está sempre presente, mesmo quando tingida por uma ingenuidade piedosa, ou um verniz de amor pelo próximo. Afinal o seu amor ao próximo apenas atinge a profundidade suficiente para o encarar como prospectivo irmão. E quando finalmente se torna irmão, continua uma capa fina, que desaparece ao primeiro sinal de heresia.

As religiões dão-se mal no confronto com ideias diferentes da sua e esse mal-estar aumenta na proporção em que a diferença é próxima. A traição de um irmão, de um que defendeu a mesma fé, é sempre mais amarga e difícil de suportar, numa reencenação do beijo de Judas! A diferença suporta-se melhor no lavar de mãos, um pagão ignaro, do que no companheiro íntimo que comeu pão à mesma mesa.

Mas não podemos ignorar o que sente aquele que é considerado traidor. Como pode alguém que teve a mesma forte fé, apostatar? Ora, ninguém faz isso sem um motivo forte, a menos que seja absolutamente paranóico. E embora os seus companheiros estupefactos o encarem assim numa primeira fase, depressa percebem que não está louco, e passam a temer a sua lucidez e o seu conhecimento. Têm medo de descobrir que o que antes consideravam luz, seja afinal escuridão. Este medo, mostra-se na obstinação com que se agarram aos seus dogmas. Um medo semelhante ao náufrago que no meio do mar, se agarra desesperado a qualquer coisa que flutue.

Nesta doença mental que é a crença religiosa, as coisas simples são amplificadas até ao ridículo. Para o homem religioso, certas peças de vestuário parecem imbuídas de poder mágico, sagrado. As vestes tornam-se sacerdotais. Aparecer perante Deus, torna-se como uma audiência a um Rei, e depois ficam espantados de os restantes se sentirem afastados Dele! Deus adquire exigências obstinadas na forma de postura. De forma mais perniciosa Deus controla um sem número de aspectos da vida do crente. É a dieta, são os hábitos e os prazeres. Tudo passa a estar debaixo do critério e escrutínio de Deus, se bem que sempre pela interposta interpretação, daqueles que exibindo um estatuto de maior proximidade com Deus, reclamam o privilégio de definir a conduta.

Deus conhece-se sempre por interposta pessoa, sempre pelo testemunho do outro e nunca por uma revelação directa e clara. Todas as revelações directas se revelam estranhas, mais fruto de psicoses mal curadas, do que resultado de uma sadia conversa com Deus. Alguns acham que se deve respeitar a religião, mesmo quando as ideias que defende, são para dizer o mínimo um disparate. As ideias, religiosas ou não, devem valer pelos seus próprios méritos e não porque vêem embrulhados em divinidade.

É sobre ideias propaladas pela religião que quero falar agora. Quero abordar um caso particular, e isso não quer dizer, que não pudesse apresentar outras ideias, de outras religiões. A coisa mais ridícula é censurar o outro quando ele é apenas um reflexo nosso. Creio que era isso que Jesus queria dizer, quando falava do ‘próximo’. Vou falar sobre as Testemunhas de Jeová. Não porque como religião minoritária isso seja mais fácil. Aliás é até mais difícil porque pode confundir-se com alguma espécie de preconceito ou de má vontade. Nenhum outro assunto me move, a não ser a avaliação das ideias propostas, nos seus próprios méritos. E qual a ideia da testemunhas de Jeová que me merece dissertação tão longa?

Pois é, as Testemunhas de jeová, andam difundindo entre os seus membros, que procurar o ensino superior é uma coisa má. Contrapõem que a busca do ensino superior é uma busca materialista e dão a entender que fariam melhor se todos se tornassem pregadores como profissão ou que gastassem a maior parte do seu tempo, a pregar que o fim do mundo, ou do sistema de coisas, se aproxima rapidamente. É uma versão curiosa do perdão imediato obtido na conversão! Como se antes, todo o mal praticado pelo convertido se esfumasse como apenas uma fase de demência temporária e inimputável. Curiosamente S.Paulo na sua carta aos Romanos, não faz vista grossa desses pecados e diz que eles (os pecadores), “…são inescusáveis”! Mas não podemos censurar os desejos altruístas de nos salvarem a todos de uma calamidade iminente, tanto quanto o entendem. Percebo que possam ser bem-intencionados e louvo-os por isso.

O que não posso entender é que censurem os seus que procuram alargar os seus conhecimentos avançando para o ensino superior! O que há de tão maléfico e perverso no ensino superior?
Nas suas publicações é defendida a tese, de que melhor que a educação superior é a educação dada por Deus, segundo o modelo jeovista. Dão a impressão dos que o que buscam a educação superior, são movidos por materialismo ou desejo de destaque, como se só a ganância ou o orgulho fossem os motivadores. Nenhuma outra motivação é sequer equacionada. A curiosidade natural, o desejo de aprofundar o seu conhecimento nas obras de Deus ou até talvez o altruísmo de servir os outros, não são considerados como motivação para a prossecução de uma educação superior. Tais nobres motivações, apenas podem ter lugar à Testemunha de Jeová que abdicando da educação superior se empenha na tarefa de pregar a outros as verdades que aprendeu no seio do movimento.

Compreendo a pungência do apelo, já que as Testemunhas de Jeová, vivem sobre a permanente expectativa de um fim que acaba sempre adiado. Salvar vidas, é o resultado do seu trabalho de pregação, tomando toda e qualquer outra actividade um lugar secundário na testemunha devota. Nem mesmo a especulação teocrática ou a discussão sobre as qualidades de Deus e seu projecto é estimulado entre elas. A sua organização se encarrega da parte intelectual e da construção doutrinal. Elas entendem-se como um exército de Cristo que debaixo da orientação dos seus líderes parte à conquista de um mundo mau, todo ele no poder do anjo perverso: Satanás, o Diabo. E tal como num exército, não se consente ao soldado que pense por si mesmo, mas que pura e simplesmente obedeça! Num cenário de guerra, — e as Testemunhas de Jeová vivem num permanente cenário de guerra, onde o mundo inteiro é seu inimigo e as odeia, — não se consente nenhuma folga, para enveredar por educação superior.

Espero que a liderança das testemunhas de Jeová, os responsáveis pela elaboração dos seus aspectos doutrinários, saibam ser coerentes com aquilo que escrevem nas suas publicações, envernizado com o argumento de ser a vontade de Deus. Assim espero que quando se encontrarem doentes, não consultem um médico, nem mesmo um enfermeiro, porque estes tiveram uma educação superior. Devem ser gananciosos e orgulhosos, instrumentos de Satanás, num mundo alienado de Deus. A quem recorrerão não faço ideia! Talvez não lhes faça muita diferença na proximidade de um fim breve. Se esse fim for a brevidade da morte, há que entender que a morte não é o fim e acordarão com perfeita saúde num Paraíso restaurado ou na própria presença do Deus Altíssimo nos céus. Tal atitude relembra os hospitais da Idade Média, que serviam não para curar o enfermo, mas apenas para cuidar dele, até que a natureza seguisse o seu curso e ele se recuperasse ou morresse. A lógica era que em morrendo a sua alma iria para Deus se o tivesse feito por merecer em vida. E portanto se iria para um lugar melhor, não valia a pena estar a perder tempo em recuperá-lo porque aqui na Terra ficaria sempre pior!

Também espero que a liderança, por uma mera questão de coerência, não recorra à moderna tecnologia de impressão a alta velocidade, resultado da engenharia que a educação superior tornou possível. Que ao invés e segundo o modelo dos tempos antigos empreguem uma multidão de copistas destros. E como gostam tanto de encontrar um texto bíblico para o apoio das suas posições, sugiro aquele que ordenava aos reis em Israel que escrevessem para si mesmos uma cópia do livro sagrado (Deuteronômio 17:18).

Por consequência também devem abdicar do telefone, do fax, dos computadores e outras ferramentas que apenas são possíveis porque alguém ao invés de escutar o conselho da liderança jeovista, preferiu seguir a educação superior. E enquanto a influência das Testemunhas de Jeová no mundo é marginal, quando elas mesmas se debatem nos mesmos problemas que são comuns à nossa condição humana, fica estranho a sua oposição áquilo que verdadeiramente poderia contribuir para diminuir e em muito os males do mundo. Ninguém pode negar os avanços benéficos na área da saúde, por exemplo. É verdade que a medicina ainda não nos pode tornar imortais, mas com certeza nem mesmo as Testemunhas podem! Tudo o que podem fazer é depositar esperança numa promessa. Entre uma promessa e uma melhoria, acho que as escolhas são óbvias.

Mas pode haver outra motivação no discurso da liderança das Testemunhas. Qualquer religião que não vê novos crentes aderirem está condenada a desaparecer. Em denominações pequenas como as Testemunhas isso pode tornar-se ainda mais dramático. Por isso, têm necessidade de um esforço estrénuo para ganhar novos membros. Nenhuma boca pode ser dispensada! Mas isso apenas dá vigor e força maiores à denúncia do Cristo no capítulo 23 de Mateus. Já não é mais uma devoção, mas antes missão política. Não é mais uma fé, mas uma estratégia. Como está muito bem espelhado nas palavras da Bíblia em João 11:48 “Se o deixarmos assim, todos depositarão fé nele, e virão os romanos e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação.”

É o medo de perder o seu lugar, a sua nação, que faz a liderança publicar tais barbaridades, na esperança que não percebam as suas reais intenções. Além do mais, um rebanho ignorante e obediente é muito mais fácil de manipular. Foi assim que perante Pilatos a liderança judaica conseguiu convencer o povo ignorante a gritar pela morte, daquele que apenas os havia alimentado, curado os seus doentes e ressuscitado os seus mortos.

A história tende a repetir-se incontáveis vezes. Mas enquanto a repetimos, não há verdadeiro progresso, nada melhora, nenhum bem resulta. Só a maldade ganha pontos. O verdadeiro amante da verdade, tem sede de conhecer. Não tem medo de nenhuma pergunta, porque em cada pergunta há algo por saber e que precisa ser descoberto. Até a fé devia ter uma coragem igual. Mas quando não é assim tão forte, e o seu alicerce é frágil então precisa ser fortemente resguardada. Como Jesus disse, aos que ele próprio havia escolhido: “Por que sois medrosos, vós os de pouca fé?” (Mateus 8:26)

Contribuído por Pedro Sete