terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A atração dos fundamentalismos



De um ponto de vista psicológico o fundamentalismo é tranquilizador. Nos fundamentalismos só há certezas, o que é necessariamente reconfortante. Num mundo que se altera constantemente, onde já não parece haver absolutos, o fundamentalismo atrai reforçando a ideia dos valores eternos, permanentes, absolutos. É o domínio reconfortante para o homem-criança, que sente saudade da infância, quando o pai lhe dava a mão e o ajudava a atravessar a estrada, protegendo-o dos perigos.


Nos fundamentalismos ao contrário de uma posição racional e científica, a dúvida não é motor da curiosidade, estímulo de saber mais. Não, a dúvida é cristalizada, encapsulada pelo dogmatismo, que converte todas as dúvidas em certezas. Uma forma de ver o mundo infantilizada, onde tudo tem o seu lugar. Esta cristalização da dúvida em certeza absoluta -- dogma -- contém a raiz da violência sectária, da que vê o outro não com curiosidade, mas com antagonismo, um antagonismo que pode derivar em violência, num imperativo moral [1] se bem que enviesado. A violência é o esforço por manter uma ordem moral. Pode parecer um paradoxo, mas realmente as relações humanas são um conjunto de paradoxos. Portanto, é natural que durante uma situação psicológica de fragilidade, alguém se sinta atraído a uma ideologia fundamentalista, autoritária. O regresso à infância tranquilizadora, ou até mesmo ao seio materno onde era possível um sono tranquilo.


O impedimento do questionamento, impede a introdução de perturbações e igual a uma criança, não lhe exige o esforço de uma resposta. Porque às crianças não se espera que tenham respostas sobre os mistérios do mundo. O não saber, o desconhecimento é um perigo. E sem perguntas há menos perigos. Face ao perigo o cérebro primário o da luta ou fuga, a primeira reação do animal assustado seja a fuga para o seu território, onde se sente tranquilo. Não é apenas o gato que assustado corre para o seu território mesmo que esta fuga o faça atravessar a estrada onde correrá o risco de ser colhido por um automóvel. O cérebro das lutas e das fugas não é racional, é imediato, brusco nas decisões. Nos fundamentalismos ao contrário de uma posição racional e científica, a dúvida é inútil. Ela é cristalizada, encapsulada pelo dogmatismo, que converte todas as dúvidas em certezas, disparadas com a brusquidão das decisões instintivas, imperativos arcaicos do primado da sobrevivência, ditames do cérebro primitivo fabricado por uma evolução com base no mecanismo da sobrevivência do mais apto. Ou apenas do mais sortudo, que o aprendizado fez-se por tentativa-erro.


É o conforto dos ignorantes, a ilusão de sabedoria para os estúpidos e campo de domínio dos psicopatas que dão aí vazão aos seus instintos manipuladores. É também campo dos sado-masoquistas com sexualidade mal resolvida. É o domínio da pedofilia, que perverte o afeto numa relação de poder. É de facto por isso que todas as ditaduras são semelhantes, apesar de todas se revestirem de boas intenções. Mas, como sempre, não são as ideias que fazem os homens, são os homens que fazem as ideias e se servem delas para justificar o que são.


Paralelamente assim como se busca o dogmatismo que oferece certezas, também se vai buscar a figura do pai severo, o que disciplina, coloca ordem, mesmo que esta seja arbitrária e nesse sentido autoritária, porque se quer acreditar que o universo rola da mesma maneira. Há que acreditar que tem sentido, que a sua marcha obedece à vontade de uma entidade qualquer, que há sempre alguém responsável, como um Deus benévolo, ou um Diabo perverso. É preciso impedir o mal e conjurar o bem. É preciso fugir da tentação e ser obediente. É necessária uma barreira, uma proibição, entre o nosso desejo e o que deve ser feito, com o risco que o mundo deixe de funcionar. Um ritual que mantenha o cosmos em ordem.


A criança, não precisa compreender a proibição, esta é-lhe imposta. É a essa segurança da infância em que uma confiança incondicional garantia que as ordens do pai e a obediência incondicional a elas, fossem percebidas como um benefício, uma proteção. É esta tranquilidade sem racionalidade, esta infantilização, este regresso ao tempo em que um ser severo mas benevolente zelava pelos seus interesses a que o adulto pretende regressar ao mergulhar em ideologias fundamentalistas, absolutistas [2]. Não é diferente com os ressurgimentos de ideologias radicais em especial no espectro mais à direita. Os latidos que enviam às ovelhas acantonadas nos seus redis batem sempre nas inseguranças do rebanho, inseguranças reais ou imaginárias e muitas vezes fabricadas por aqueles que pretendem beneficiar-se à custa das inseguranças dos outros. Afinal em terra de cegos quem tem um olho é rei.


A violência só acaba quando a comunidade considerar que ela não é aceitável. Por isso são perigosos os discursos de ódio, o alimentar daquilo que nos separa e torna os “outros” diferentes de “nós”. Os populismos crescem acentuando essas linhas de separação, nutrem-se delas, criam inimigos, precisam deles se hão-de afirmar-se. E prometem sempre segurança. Os preconceitos, são ideias que procuram criar limites, barreiras, entre algum “nós” e os “outros”. Por isso as ideologias fundamentalistas, e elas não se encontram apenas à direita, mas são mais comuns aí, têm demasiados preconceitos, criando em volta dos que as aceitam, barreiras, cercados, redis. Mesmo que em si mesmas essas ideias sejam inócuas, os preconceitos são sempre vazios, mas enchem-se de ficções que os sustentam. O racismo existe, mesmo que o conceito de raça não tenha fundamento. A minha raça é sempre melhor que a tua, mesmo que não seja possível definir “raça”! Apesar de não me interessar com quem o outro fornica, serei contra os homossexuais, apenas porque não quero ser como eles. Mas acaso sou obrigado? Ou não estará aí apenas o medo, o enorme desconforto de saber que afinal, posso ser como eles? O capitalismo é o melhor sistema económico do mundo, porque tenho medo que a alternativa me tire algo que não tenho. [3]


Saber que o mundo tem ordem, regras, que funciona como um relógio divino é a tranquilidade que os fundamentalismos fornecem. Um mundo simples de entender, porque sim, porque é assim que tem de ser. Um mundo infantil, que se pode contar e explicar às crianças que se contentam com histórias simples. Um mundo que não muda e porque não muda, não nos pode assustar.


Sim, a base de aceitação de qualquer fundamentalismo reside no medo.


[1] https://aeon.co/essays/people-resort-to-violence-because-their-moral-codes-demand-it

[2] http://www.alexandrastein.com/uploads/2/8/0/1/28010027/cults_final_ttsep16.pdf

[3] https://eand.co/the-age-of-disintegration-e1dccabd69b2