segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Alimentando a muitos pelas mãos de poucos



Na edição de estudo de “A Sentinela” de Julho de 2013, as Testemunhas de Jeová fazem um exercício exegético curioso, em que tentam convencer os leitores de que o seu actual Corpo Governante (a liderança do movimento) é o mesmo que o “escravo fiel e discreto” que aparece numa das ilustrações de Jesus no evangelho de Mateus (Mateus 24:45). É importante para as Testemunhas de Jeová este assunto, porque a autoridade da liderança radica quase por inteiro neste entendimento muito particular sobre quem é o tal “escravo fiel e discreto”, embora se trate meramente de uma ilustração de Jesus, e não como entendem as Testemunhas de Jeová, a designação de alguma classe de discípulos. Aliás, a ser isso, cairia por terra uma afirmação das Testemunhas que diz que entre eles são todos iguais, sem nenhuma classe clerical. Ora objectivamente, o Corpo Governante que define a ortodoxia do movimento e o faz com uma disciplina férrea, é uma classe sobre todos os demais, que estabelece uma hierarquia funcional de cima para baixo, desde os Superintendentes de Filial, passando por superintendentes de distrito e de circuito até aos anciãos e servos ministeriais, estes últimos nas congregações locais. Aliás, a partir dos superintendentes de circuito para cima é a própria organização que lhes paga a subsistência, tornando-os autênticos funcionários teocráticos ao serviço permanente da organização.

Mas não é sobre esses aspectos hierárquicos e funcionais que queremos analisar. Queremos antes verificar se, de um ponto de vista meramente exegético, isto é, se raciocinando meramente à base da Bíblia, o exercício de reclamar que há um modelo apostólico que respalda que Jesus, o incontestado líder da congregação cristã, designou em termos de ensino um pequeno grupo, para por meio dele, alimentar espiritualmente os restantes, ou não.

 O primeiro golpe a este raciocínio, ainda antes de abordarmos o artigo de “A Sentinela”, é dado pela própria Bíblia. Peguem numa e observem os livros que dela constam no Novo Testamento, e notem como todos eles emanam de um autor identificado e não de nenhum corpo ou organismo existente no primeiro século. Isto é, os autores da Bíblia, se bem que inspirados por Deus, são indivíduos e não organizações. Só por si, isto seria suficiente para inviabilizar qualquer raciocínio que defendesse a existência hoje de uma organização usada por Jesus para alimentar espiritualmente a outros. Como Jesus fazia menção em Mateus 24:45, “o escravo fiel e discreto” seria todo aquele que alimentasse os seus irmãos. Ou seja, cada cristão, na medida do seu progresso espiritual, adquiriria a responsabilidade de se tornar instrutor de outros. É precisamente nesse sentido que Paulo vai apelar aos hebreus (Hebreus 5:12): “Pois, deveras, embora devêsseis ser instrutores, em vista do tempo, precisais novamente que alguém vos ensine desde o princípio as coisas elementares das proclamações sagradas de Deus e vos tornastes tais que precisais de leite, não de alimento sólido.” Reparem na dicotomia de se ser simultaneamente instrutor e instruído, numa relação não hierárquica, pois Paulo não está aqui a apontar para uma qualquer classe de instrutores, mas para uma relação igualitária entre irmãos. Aliás sabemos hoje que as comunidades paulinas (congregações por ele estabelecidas) eram comunidades de uma ampla participação entre os seus membros, onde inclusive se permitia a participação às mulheres!

Portanto, ao observar mais do alto a Bíblia e as comunidades existentes no cristianismo primitivo, nada aponta para a existência de uma classe do “escravo”, para algum Corpo Governante, ou qualquer outro corpo central e centralizador de autoridade. Reforço dessa ideia vem do livro de Revelação, em que Jesus não se dirige a um corpo central para transmitir a outros as suas orientações, mas manda recados a sete congregações. Mesmo o argumento de que ao apóstolo João fiel receptador da mensagem, cumpra o papel do Corpo Governante, tal cai por terra pois a mensagem foi entregue a um indivíduo, na tradição dos tempos passados. Cumpria sempre ao profeta ser o transmissor da mensagem, mesmo que ela se destinasse a vários destinatários. Deus sempre suscitou um indivíduo, não uma classe, para transmitir as suas mensagens. E mesmo a existência de uma classe sacerdotal em Israel, não tira força ao argumento, se se tiver cuidado na análise: a classe sacerdotal apenas existia pela necessidade da oferta de sacrifícios no tabernáculo e depois no templo.

Voltemos, então, agora, ao artigo em pauta. O artigo pega em dois episódios do ministério de Jesus, aqueles em que ele alimenta materialmente a multidão, os famosos milagres da multiplicação dos pães. Nas duas ocasiões depois de Jesus ter pregado às multidões, ele manda que os apóstolos providenciem algo para elas, e aproveita para então fazer o milagre da multiplicação. O artigo defende, então, a tese que isso mostra que esse seria para sempre o modelo, Jesus providenciaria e depois esse alimento seria distribuído pela mão de uns poucos. Seria nesta sequência que se iria inserir a classe do “escravo fiel e discreto” e este será o Corpo Governante.

Primeiro problema: nas duas ocasiões foi providenciado quer alimento espiritual, quer alimento material. Portanto, fazer a aplicação da distribuição de alimento material como paralelo ou modelo da distribuição de alimento espiritual, é para dizer o mínimo, abusivo! Se alguma ilação se pode tirar do episódio, seria até contrária à prática das Testemunhas de Jeová! No caso, Jesus seria o providenciador do alimento espiritual, distribuído por ele directamente e sem intermediários, beneficiando a todos, e caberia aos discípulos mais próximos a responsabilidade de providenciar o que era material! Não esqueçamos que Jesus interpela directamente os apóstolos nesta questão da providência material: "No entanto Jesus disse-lhes: “Não precisam ir embora; dai-lhes vós algo para comer”" (Mateus 14:16) Note-se que a interpelação é directa, Jesus acha que é a eles que cabe providenciar materialmente a multidão. Ora, as Testemunhas de Jeová consideram hoje que não é sua responsabilidade primária providenciar materialmente os necessitados, o que até contraria outras passagens das Escrituras. (Tiago 1:27)

Segundo problema: a distribuição, embora pela “mão de poucos”, no caso em apreço, pelas mãos dos discípulos, não indicia qualquer organização específica! Ou seja, naquela altura não havia nenhum corpo de discípulos específico, semelhante, por exemplo, ao Corpo Governante, como estando separado dos demais. Se há aqui algum paralelo a tirar para a modernidade, seria o de que todos os discípulos têm igual responsabilidade na distribuição de alimento. É importante frisar que o texto refere discípulos e não apóstolos. Também tentar argumentar que estes ‘discípulos’ eram os apóstolos, parece ter muito pouco cabimento, pois sabemos que, entre os discípulos que seguiam a Jesus, havia mulheres (Mateus 27:55) e em certa ocasião se refere que setenta haviam sido enviados em uma campanha de pregação (Lucas 10:10). Portanto, estes dois episódios não justificam a ideia de alimentar a muitos pela mão de poucos, porque neste caso os poucos seriam todos os discípulos presentes. Necessariamente teriam de ser substancialmente mais de 12 se haviam de alimentar a milhares num tempo razoável!

Terceiro problema: naquela ocasião, a multidão alimentada não se tornou automaticamente seguidora de Jesus! Se é verdade que mais tarde o quiseram fazer rei, isso se prendeu com o facto de buscarem a sua própria vantagem (João 6:15). Portanto, seria uma má ilustração de como alimentar espiritualmente alguém, pois este modelo geraria sentimentos egoístas, como se alguém que buscasse o Reino e a sua justiça, apenas estivesse animado na busca da sua própria vantagem. Ora, a lição de Jesus não é essa! A sua lição vai sempre no sentido e na prática do amor. O alimentar pessoas é, de facto, evidência disso, do cuidado e da preocupação com os outros. (Mateus 15:32)

Concluindo: não há nestas passagens, nenhuma base sólida para acreditar que Jesus estivesse pensando em estabelecer um modelo de distribuição de alimento espiritual para o futuro. A ideia de alimentar a muitos pela mão de poucos, acaba sendo uma construção frágil. Tanto mais frágil, se pensarmos que o verdadeiro providenciador é Jesus. Os discípulos apenas têm de dar “testemunho de Jesus” (Revelação 19:10). E, como diz Paulo, “não vades além das coisas que estão escritas” (1 Coríntios 4:6) ou ainda em outra ocasião quando diz que não se acredite em outras boas novas, nem mesmo que transmitidas por um anjo! (Gálatas 1:8) Tais afirmações reforçam a ideia de que tudo o que havia para revelar tinha sido revelado por Jesus e apenas haveria que seguir o seu pensamento.

Jesus é o líder activo da congregação cristã e não precisa delegar autoridade em ninguém como classe para dirigir a congregação. Isso seria, aliás, a negação do papel que lhe cabe. Como fez no passado, apenas precisa de assegurar que com a colaboração humana, o seu alimento esteja sempre disponível. Neste particular, quero mencionar que quando as Testemunhas de Jeová apareceram no cenário do mundo, já muitos antes delas haviam outros colaborado com Jesus nesse sentido. Muitos traduziram a Bíblia com risco da sua própria vida até, muitos tinham dado a sua interpretação do texto, ou elucidado certas passagens, todos esses, mesmo que em denominações diferentes e até com visões antagónicas, contribuíram para o dinamismo do Cristianismo e para que a sua chama e encanto se mantivesse acesa. Foi sempre a autoridade, a concentração de poder eclesiástico, que trouxe sobre ele, Cristianismo, as piores manchas, o seu lado mais sinistro, sombrio e negro. As organizações foram elas sempre a lançar blasfémia ao nome do Cristo, contribuindo mais para a sua desconsideração e descrença, do que a fé do crente individual, do discípulo que movido pelo seu exemplo e ensino se esforçou no caminho do amor.

sábado, 7 de setembro de 2013

Laika e a Profecia



 Sei que alguns são cépticos por natureza e descartam de imediato a possibilidade mesmo que remota de a Bíblia conter profecia. O que é profecia? perguntam os menos familiares com estas coisas. É simples: Profecia é ser capaz de dizer o que vai acontecer no futuro. Não importa muito para o caso quem é o autor, embora quando se fala de ‘profecia’ seja habitual considerar que Deus é o originador[1]. Sem entrar em polémicas, faria todo o sentido face ao seu epítome como Todo-Poderoso[2]. Sendo Deus capaz de tudo, excepto de mentir, Ele pode dizer o que vai acontecer no futuro porque por meio do seu poder, Ele pode fazer acontecer. Até aqui mesmo os cépticos terão de concordar que há uma lógica imbatível.

Os problemas que levantam são de outra natureza, eles os cépticos, acham que Deus nunca fez profecia nenhuma independente do seu poder e que tem sido uns humanos dados a misticismos que dizem falar em nome Dele. Às vezes até dando-Lhe má reputação, em especial quando não acertam! Coisa aliás que as Escrituras até já prevêem. [3] A verdade é que alguns, sem dizer que são profetas, e para escaparem do destino reservado aos mentirosos, interpretam o texto sagrado e fazem considerandos diversos. O resultado na prática é o mesmo: pretendem convencer-nos que sabem o que Deus trará no futuro. Normalmente este percurso, que, dizem, é sempre a pensar no bem dos outros, reveste-se da venda de livros ou no arrebanhar de conversos à volta das organizações que costumam erigir. Como as organizações não se aguentam sem recursos financeiros, percebemos que o principal objectivo seja meter a mão no bolso de alguém[4], mesmo que seja por amor e sem compulsão[5]. 

Ora, como não possuo nenhuma organização, nem pretendo vender livros, revistas, brochuras, tratados ou panfletos sobre as profecias que Deus me tenha dado para revelar, nem tão pouco a minha interpretação do texto sagrado como mapa do futuro, vou partilhar convosco uma interpretação profética GRATUITAMENTE. 

Se tendes paciência de me acompanhar no esforço exegético que realizei, não para ver o futuro, mas antes para ver como ele se escreveu no texto inspirado, peço-vos a vossa paciência e aquiescência em me seguirdes o raciocínio. 

Deixem-me colocar logo de início e sem delongas a tese que quero provar: A Laika, a cadela russa, lançada no espaço estava há muito profetizada na Bíblia. 

Antes que me chameis de louco, convido-vos a analisar de perto as seguintes passagens bíblicas e respectiva interpretação: 

14 “No entanto, quando avistardes a coisa repugnante que causa desolação estar de pé num lugar onde não devia (que o leitor use de discernimento), então, comecem a fugir para os montes os que estiverem na Judéia. (Marcos 13:14) 

Então o texto acima diz que uma coisa repugnante havia de estar num lugar onde não devia! Aqui o importante é fixarmos a atenção na coisa repugnante. O que para um israelita era repugnante? Sabemos que os israelitas tinham um estrito código dietético e que consideravam alguns animais impróprios para a sua alimentação, nomeadamente os porcos. Mas há um animal usado na Bíblia para descrever a ignomínia e repugnância. Veja se nota nos textos a seguir: 

11 Igual ao cão que volta ao seu vômito, o estúpido repete a sua tolice. (Provérbios 26:11) 

 E em termos nada incertos e muito menos lisonjeiros é a passagem: 18 Não deves trazer a paga duma meretriz nem o preço dum cão à casa de Jeová, teu Deus, para algum voto, porque são algo detestável para Jeová, teu Deus, sim, ambas estas coisas. (Deuteronômio 23:18) 

A conclusão parece-me óbvia, os cães representam no texto bíblico aquilo que de mais repugnante possa haver. Repare-se agora na seguinte passagem: 

25 “Também, haverá sinais no sol, e na lua, e nas estrelas, e na terra angústia de nações, não sabendo o que fazer por causa do rugido do mar e da [sua] agitação, 26 os homens ficando desalentados de temor e na expectativa das coisas que vêm sobre a terra habitada; porque os poderes dos céus serão abalados. (Lucas 21:25, 26) 


Repare-se que fala de ‘sinais’ aonde? “No sol, na lua e nas estrelas…” apenas quer dizer que se trata do espaço onde orbitam tais astros! Portanto trata-se do espaço sideral! Repare-se que isso acontece no meio da angústia das nações, com a humanidade incerta quanto ao seu futuro. Quando é que portanto tal sinal se cumpriu? Obviamente quando um cão, coisa repugnante foi lançado para o espaço sideral, onde não devia estar, pois o ligar dos cães é na Terra! E quando aconteceu isso? No início da Guerra Fria, quando a União Soviética o principal estado comunista do mundo, lançou em órbita a cadela Laika[6]! Nessa altura a humanidade estava incerta quanto ao seu destino se o mundo descambaria numa perigosa corrida armamentista agora com armas nucleares que haviam mostrado o seu poder destruidor sobre o Japão. 

Mas atentem em mais uma passagem bíblica: 

24 Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios, a fim de desencaminhar, se possível, até mesmo os escolhidos. (Mateus 24:24) 

Ora é bem a propósito, porque os comunistas são o falso Cristo, com uma promessa de um mundo melhor descartando Deus! Os comunas erguiam-se como falsos profetas proclamando a superioridade de uma sociedade materialista, sem necessidade da piedosa reverência a Deus! Os desejosos de uma sociedade melhor, poderiam acreditar que esta seria alcançável, sem a crença em Deus e sem a submissão à sua vontade, podendo por isso ser desencaminhados por tal “filosofia e vão engano”[7]. 


Parece-me, retomando a tese inicial, que ela fica plenamente provada! Assim a importância do lançamento no espaço sideral de uma simples cadela pelo então emergente estado ateu e anti-cristão da comunista União Soviética, foi com antecedência anunciado nas Sagradas Escrituras do Senhor! A profecia divina foi cumprida para glória Dele na cadela Laika[8].


Adenda:

"aguardando e tendo bem em mente a presença do dia de Jeová, pelo qual [os] céus, estando incendiados, serão dissolvidos, e [os] elementos, estando intensamente quentes, se derreterão!"
(- 2 Ped. 3:12)

Este texto também se cumpre na cadela Laika. Sabe-se hoje que a cadela que foi aos céus morreu por excesso de calor, tal como o texto acima deixa perceber.


 [1] (2 Pedro 1:21)  Porque a profecia nunca foi produzida pela vontade do homem, mas os homens falaram da parte de Deus conforme eram movidos por espírito santo. 

[2] (Êxodo 6:3) E eu costumava aparecer a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-poderoso, mas com respeito ao meu nome Jeová não me dei a conhecer a eles. Note-se que apareceu primeiro como “Todo-Poderoso” conforme se atesta nesta passagem. 

[3] (Deuteronômio 18:20-22) 20 “‘No entanto, o profeta que presumir de falar em meu nome alguma palavra que não lhe mandei falar ou que falar em nome de outros deuses, tal profeta terá de morrer. 21 E caso digas no teu coração: “Como saberemos qual a palavra que Jeová não falou?” 22 quando o profeta falar em nome de Jeová e a palavra não suceder nem se cumprir, esta é a palavra que Jeová não falou. O profeta proferiu-a presunçosamente. Não deves ficar amedrontado por causa dele.’ Note-se o castigo para os profetas aldrabões, muito eficaz se fosse aplicado. 

[4] (Lucas 20:46, 47) 46 “Acautelai-vos dos escribas, que desejam andar de vestes compridas e que gostam dos cumprimentos nas feiras, e dos primeiros assentos nas sinagogas e dos lugares mais destacados nas refeições noturnas, 47 e que devoram as casas das viúvas, e, como pretexto, fazem longas orações. Estes receberão um julgamento mais pesado.” São palavras atribuídas a Jesus que ao que dizem sabia ler os corações os homens. Presumo que nem sempre apreciaria o que lia… 

[5] (2 Coríntios 9:7) Faça cada um conforme tem resolvido no seu coração, não de modo ressentido, nem sob compulsão, pois Deus ama o dador animado. [


[7] (Colossenses 2:8) Acautelai-vos: talvez haja alguém que vos leve embora como presa sua, por intermédio de filosofia e de vão engano, segundo a tradição de homens, segundo as coisas elementares do mundo e não segundo Cristo; 

domingo, 13 de janeiro de 2013

Judas Iscariotes, o Mal-Amado


Judas era um nome comum em Israel. A Bíblia por exemplo até tem um pequeno livro, pretensamente escrito por um Judas, embora não saibamos qual deles é, pois em Lucas e em Actos, a lista dos apóstolos deixa-nos com dois Judas.

Sobre Judas, as Escrituras mostram alguma dissonância nos relatos, sendo que quanto mais recentes são, mais a figura do Judas aparece vilipendiada. Por exemplo no evangelho de Marcos, diz-se que Judas entregou Jesus às autoridades, mas não se esclarece quais as suas motivações. Em Mateus, já aparece a motivação, sendo ganhar 30 moedas de prata, mas fala de algum remorso que o acaba por levar ao enforcamento. Em Lucas já diz que foi o Diabo que o arrastou para o acto de trair. E em João ele é chamado de “filho da destruição” e quase equiparado a um demónio encarnado. No livro de Actos diz que ele cumpriu profecia e que morreu não enforcado como diz Mateus, mas que rebentou pelos intestinos.
Não menos importante, Paulo não dá qualquer importância ao homem como traidor, nem sequer o menciona por nome, dizendo simplesmente que Cristo foi “entregue”.

Sabemos que Judas deve ter vindo de uma família abastada pois a ele foi entregue a responsabilidade pelas contas dos apóstolos. Ora sendo Mateus um profissional dos impostos (colector) e habituado a lidar com dinheiros, é estranho que se tenha preterido este em favor de Judas, se Judas não soubesse lidar com dinheiro e registos.

Se as profecias apontavam para um traidor, alguém dentre a humanidade teria de cumprir esse infame papel. E portanto, o destino de Judas estava traçado.

Contudo acho que isso nos leva a problemas sérios se entendido dessa maneira simplista. Se Jesus morreu por todos, também morreu por Judas!

Se a morte é o salário pago pelo pecado. Então, ao morrer, Judas pagou tudo! Pode então aguardar a ressurreição “tanto de justos, como de injustos”[1].

Alguns talvez prefiram um Judas morto e enterrado para sempre.

Mas o facto de ele ter depois rejeitado o dinheiro e se ter suicidado, não indica um Judas arrependido? Alguém com consciência suficiente para lamentar o que fez?

O ladrão da caixa das contribuições, afinal não era assim tão ganancioso, pois foi devolver as moedas de prata, numa tentativa de remediar o mal, de por fim ao contrato. E se Judas é execrável, quão execrável são os que lhe pagaram? Contudo, estes últimos tornaram-se “obedientes à fé”[2] e alcançaram a salvação e este convivendo tão de perto com o maior homem que já por cá andou, não foi sensível ao seu amor? Foi capaz de trair?

Por outro lado, esta traição é uma coisa estranha. Não estava Jesus pregando publicamente? Para que precisavam os sacerdotes de alguém que lhes indicasse quem era o Jesus que procuravam? Não o conheciam sobejamente? E seriam assim tão ingénuos, que não teriam os seus informadores, que lhe relatariam em pormenores, todas as movimentações de Jesus? É bom lembrar aqui que a decisão de o matar, foi uma ideia amadurecida no tempo e não alguma fúria repentina! Portanto mesmo que não houvesse um Judas, os sacerdotes sempre acabariam por ter uma oportunidade de o apanhar. Judas só existe para cumprir profecia e não por uma necessidade prática do propósito dos sacerdotes de matarem Jesus. Embora entenda que foi conveniente, apanhar Jesus pela calada da noite, sem agitar as multidões como era propósito dos sacerdotes. Isto porque na altura Jerusalém estava cheia de peregrinos que tinham vindo para a Páscoa.

Mas após a Páscoa qual era o problema? As multidões desmobilizam e até acabam por ser manobradas. Veja-se como gritaram[3], quando Pilatos tentou libertar Jesus!

Há um conjunto de pontas soltas à volta de Judas, que precisam ser resolvidas.

Curiosamente na última ceia, Jesus parece identificar claramente quem é o traidor. E repare-se no que Jesus lhe diz: “aquilo que tens de fazer, faze-o depressa!” E o relato diz que Judas sai. Aliás para Jesus estender o bocado de pão para ele, quer dizer que Judas se sentava perto do Mestre[4] e como tal era próximo dele[5], como se diz de João por exemplo[6]. (Talvez seja esta proximidade que faz com que por inveja, João o demonize no seu evangelho![7])

Coloquem-se na pele do Judas por momentos: O Mestre acabou de dizer que há um traidor, identifica-o[8] — “o que mergulha o pão no prato comigo”[9] — diz de seguida para ele fazer o que tem de fazer. A pergunta é: Se fossem identificados como o traidor, o que fariam? Se ouvissem o Cristo dizer-vos “faz o que tens de fazer” não ficariam em temor? E como já mencionei o Judas tinha consciência. Uma consciência que o levou a rejeitar o pagamento.[10]

Mais ainda, a frase “aquilo que tens de fazer, faze-o depressa!” não combina com um instrutor amoroso como nos é dado a entender que o Cristo é. Não ficaria de bom tom, Jesus tentar arrazoar com Judas? Evitar que ele se tornasse “filho da destruição”? Como diz o personagem interpretado por Nicholas Cage no filme Next[11], “Cada vez que olhas para o futuro, ele muda, só porque olhamos para ele!” Jesus podia ter mudado o futuro de Judas.

Curiosamente Paulo, que é o último a ser escolhido por Jesus de forma directa, faz referência aos doze[12] e nenhuma em especial a Judas. Tem de haver uma explicação! Será que Judas não traiu mas ‘entregou’ Jesus?

Talvez tudo o que possamos [13] censurar a Judas, é o ter querido lucrar com a morte de Jesus, e nem sei, se mesmo isso é o mais importante para o condenar. As Escrituras até mencionavam a quantia, pela qual Jesus seria avaliado,[14] e com o pormenor de que esse dinheiro seria lançado no templo!

Se, como se diz num dos evangelhos, Satanás tomou conta de Judas[15], então que culpa tem Judas?
Jesus não libertou tantos de demónios? Como pode um homem ser culpado de ser tomado pelo demónio? Jesus, ao libertar pessoas do domínio de demónios, nunca as culpou por tal situação lastimável! Fazê-lo em relação a Judas, é forçar as coisas.

Mesmo a sua saída conforme relatado em João 13:27 a 30 parece estranha: De noite é que o Judas ia comprar alguma coisa ou dar aos pobres? Demasiado inverosímil! A Páscoa era comemorada após o pôr-do-sol, portanto entre o lavar dos pés, a refeição e tudo o mais, certamente seria tarde! Segundo os eruditos o animal era morto entre as 18 e as 19:20[16], amanhar o bicho e cozinhá-lo, nunca devia durar menos de uma hora, o mais provável é ninguém estar a comer antes das 20:00, e no relato estamos já no final da refeição! Mesmo que a refeição fosse de 30 minutos, Judas nunca sairia antes das 20:30-21:00. Não acredito que houvesse pobres nas ruas a essa hora, ou negociantes com casa aberta! Ainda para mais, com todo o mundo reunido em família para a celebração da Páscoa, que era talvez, senão mesmo a festividade judaica mais importante!

Como nota Meyer no seu livro[17], se considerarmos o relato anti-típico de José vendido como escravo para o Egipto pelos seus irmãos, notamos que o nome do irmão que sugere a venda é Judá[18], que a Septuaginta verte como Judas! Mas o que é digno de nota, é que mais tarde José perdoa aos seus irmãos, incluindo Judá![19]

É até digno de nota, no que lhes diz, quando fala da necessidade de eles “não estarem magoados” “nem irados” com eles mesmos, porque tudo aconteceu segundo a vontade de Deus. Ora não é isso também verdade no caso de Judas? Não aconteceu o que aconteceu, de modo a cumprir profecias?

Talvez o seu único erro tenha sido o ter-se matado! Mas mesmo a sua morte não é inteiramente clara. Em Mateus 27:5 diz que depois de lançar as moedas da traição no templo ele saiu e “enforcou-se”, assim sem mais adianto. Já em Atos 1:18, ficamos com a impressão de que se jogou de um penhasco e rebentou cá em baixo. Os apologistas cristãos, procurando conciliar os dois relatos argumentam que ele se tentou enforcar junto uma árvore na beira de um penhasco e que o ramo não aguentou o peso e ele veio esborrachar-se na base do penhasco. É meramente uma hipótese e ela não está em nenhum dos dois relatos!

Portanto, à volta deste homem é só mistérios. Ainda aumentados pelo chamado Evangelho de Judas, um escrito gnóstico que defende que Judas era ainda mais próximo de Jesus do que João e que lhe foi pedido pelo próprio Jesus que o entregasse às autoridades judaicas. Não é inverosímil, pois Jesus numa conversa com eles falara sobre isso como uma certeza e até censurara Pedro, por propor desfecho diferente[20].

E se a tentação é colocar esse Evangelho como um escrito apócrifo e portanto descartá-lo como congeminação apóstata, devo recordar que se calcula que a tradução copta é de 300AD, mas a partir da versão grega de meados do segundo século[21]. Portanto bem perto dos acontecimentos, relembro que o livro bíblico de Revelação foi escrito no final do primeiro século (98AD), começando a circular cópias apenas a partir dessa data.

Ainda relacionado com a sua morte, curiosamente no Evangelho de Judas ele vê a si mesmo, sendo morto à pedrada pelos restantes discípulos. Sem dúvida o mais mal-amado dos discípulos!


[1] Atos 24:15
[2] Atos 6:7
[3] Mateus 27:23
[4] João 13:26
[5]Judas” de Marvin Meyer, pág. 15
[6] João 13:23, 25
[7] João 17:12
[8] Mateus 26:25 (compare com a mesma expressão em Mateus 26:64)
[9] Mateus 26:23; Marcos 14:20; (cumpre o Salmo 41:9)
[10] Mateus 27:3, 4
[12] 1 Coríntios 15:5
[13] Bart Erhamann sugere que ‘os doze’ seria o nome atribuído ao grupo de discípulos mais próximo a Jesus. (“Did Jesus Exist?”)
[14] Zacarias 11:12, 13 (veja-se o cumprimento da profecia de Zacarias em Mateus 27:5)
[15] Lucas 22:3; João 13:27
[16]Commentary on the Old Testament”, 1973, Vol. I, O Segundo Livro de Moisés, p. 12;
[17]Judas” de Marvin Meyer, pág. 21
[18] Génesis 37:26
[19] Génesis 45:4, 5
[20] Mateus 16:21-23
[21] Visto que Ireneu de Lyon cita esse Evangelho numa obra sua de 180AD, o que aponta para uma existência antes dessa data.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O que é uma pessoa espiritual?



Uma pessoa espiritual é aquela que se preocupa com as coisas do espírito, ou seja aquelas que não estão directamente ligadas com o nosso mundo físico, mas são mais abstractas na sua natureza. Basicamente a pessoa espiritual preocupa-se com o ‘porquê’ das coisas. E talvez se preocupe acima de tudo com o porquê mais básico de todos, aquele que pergunta: Porque existimos?

Sim, a busca do sentido da vida e a preocupação com tudo aquilo que emana dessa busca é a característica da pessoa espiritual. Esta busca é uma busca pessoal, singular e íntima. Por isso, há pessoas espirituais e nunca há organizações espirituais.

A espiritualidade não precisa de Deus, ou de uma crença n'Ele. A espiritualidade dimana da procura de sentido e este pode ser achado das mais diversas formas com ou sem Deus.

Um homem de ciência é um homem espiritual? Apenas se a ciência lhe serve como alpondra na sua busca do sentido da vida. Muitas vezes a ciência oferece os materiais que permitem alargar esse campo de busca ou colocar-lhe pontos de reflexão, ela é uma ferramenta e não o fim em si da espiritualidade. A verdade é sempre subjectiva, mesmo quando sobre ela há um amplo consenso. Qualquer construção humana é sempre temporária, pelo que esta busca para o sentido da vida, esta tentativa de responder ao porquê da existência, está sempre sujeita a escrutínio.

A religião é um dos maiores obstáculos à espiritualidade. Ela já não busca, ela exime-se de escrutínio, reclamando-se detentora da verdade. Ela possui o pacote pronto, completo e acabado, só tens de te submeter ao peso da sua verdade, vergar-te à sua vontade avassaladora. O homem religioso e não espiritual, tem resposta pronta para todos os mistérios relacionados com o porquê da existência, o porquê da vida, ou seu sentido. O homem religioso sente-se ofendido quando não aceitam o seu dogma, as respostas prontas na ponta da língua às questões essenciais. Ele acredita que só não vêem a sua verdade por uma maldade qualquer, ou porque não foram ainda, tal como ele, tocados pela bondade divina. A única capaz de permitir que dos olhos cegos dos incréus e opositores caiam as escamas que os impedem de ver. Não lhe passa pela mente, nem por instantes, que a sua explicação, as suas respostas prontas, não correspondam afinal à verdade. Ele solidifica o seu coração, torna-o empedernido para não ceder à dúvida, quando esta é afinal o motor da busca do homem espiritual.

O homem espiritual não precisa ser perfeito. Precisa apenas de ter consciência de si mesmo. Precisa de ser alguém humilde, para estar disposto a ouvir as ideias alheias e aproveitar delas o que quiser, fazendo a sua própria ponderação. E depois de pensar ter achado alguma resposta que considere satisfatória, tem de manter a humildade e acreditar que possa haver uma mais completa. Muitos homens espirituais são apanhados na ratoeira de pensar que a resposta que acharam, a última, é a verdade final. Fecham-se para a necessidade de se continuarem a interrogar. Ao fazê-lo deixam de ser pessoas espirituais.

Talvez alguém diga que assumir isto, é dizer que a verdade é inalcançável! Nada atemoriza mais a religião do que um homem que não aceita que haja uma verdade última e definitiva. Afinal Deus, deve ser o epítome para onde toda a ideia conduz. Não aceitar isso é o mesmo que renegar a Deus. Mas essa é uma falsa ideia.

Como disse Ghandi: “Adoro a Deus como sendo a verdade. Ainda não O encontrei, mas prossigo na Sua busca!” [1]

[1] An Autobiography (1936); also in All Men Are Brothers : Autobiographical Reflections (2005) edited by Krishna Kripalani, p. 63