domingo, 23 de novembro de 2014

Soberania II



O livre-arbítrio do Homem só é possível de expressão se for acompanhado de um exercício de soberania. A soberania, sendo resultado da criação de Deus, só pode originar-se também n'Ele. Como discorremos em artigo anterior, toda a soberania é um subconjunto da Absoluta que Lhe pertence. Este exercício de soberania nunca pode ir de encontra o propósito de Deus, senão como um desvio temporário, um ruído no seio da eternidade, que diminui de importância na medida em que esta decorre. Mesmo assim, Deus não deixou o Homem ao desamparo, concedendo-lhe uma ferramenta orientativa: a consciência.

Paulo desenvolvendo sobre a consciência, tornou bem clara a intenção de Deus ao criá-la. Ele argumenta que é ela, que ao tornar-se uma Lei para o indivíduo, o torna responsável moral pelos seus actos e constitui a base para o seu julgamento. Reparem que julgar é um exercício de soberania. Mas o extraordinário é que o indivíduo não é julgado pela Lei de Deus, conforme vulgarmente entendida, mas julgado pela Lei da sua própria consciência! Isto só faz sentido, como muito bem argumenta Paulo, se a consciência for um reflexo da soberania de Deus, e desse modo uma espécie de subconjunto da sua Lei. Assim a violação da Lei de Deus, é primariamente uma violação da consciência.

Singrando por argumentos semelhantes é que os julgamentos dos nazis em Nuremberga, puderam fazer sentido. Mesmo respaldando-se no cumprimento da lei nazi, ou do cumprimento de ordens através das estabelecidas hierarquias, os julgamentos de Nuremberga estabeleceram o primado da consciência, anulando qualquer lei ou ordem, face a uma violação da consciência. Raciocínio que aliás tem permanecido até ao presente e constitui também a base para os chamados julgamentos de crimes contra a Humanidade.

Jesus modestamente não extravasou os limites da sua soberania (Luc.12:13,14). Já outros não se coíbem de dela se apropriar amplamente, quer auto designando-se governantes por direito divino, mesmo que de Deus não tenham recebido qualquer mandato. No entanto, ele mesmo usou sua consciência na aplicação e extensão que considerou necessário, mostrando em magistral exercício, como a consciência individual complementa a Lei de Deus na sua forma escrita. Ele mostrou que a Lei de Deus não está escrita na pedra, mas deve estar escrita no coração. (Jer. 31:33)

Há vários exemplos em como Jesus reinterpretou a Lei com base na sua consciência. Um exemplo tocante, é o da cura da mulher com o fluxo de sangue, que pela Lei ao entrar no meio da multidão incorreu numa violação da mesma. A posterior cura da mulher e a frase de Jesus: "Filha, a tua fé te fez ficar boa; vai em paz." (Luc. 8:48) Realço a palavra "vai em paz", após uma violação clara da Lei.

O aproximar-se e o tocar os leprosos, foram também violações directas da Lei. Podemos pensar que para os curar isso se fez necessário, o que é falso, pois Jesus foi capaz de curar à distância.

Jesus mostrou que a soberania divina, expressa através da consciência, é capaz de grandes feitos espirituais, conforme ele reconheceu no oficial do exército romano, quando lhe reconhece uma fé enorme. (Mat. 8:5-13) É bom lembrar que os que foram escolhidos como apóstolos, eram israelitas e de facto vez após vez, lhes censurou a falta de fé (Mat. 8:6; mat. 14:31; Mat. 16:8; Mat. 17:20) Estas coisas podem ter desenvolvimentos em termos de argumentação, deveras curiosos. Vejamos: se gentios à luz de Deut. 14:21, ao não estarem debaixo da Lei, podiam comer animais não sangrados sem pecar, então ao ficarmos libertos da Lei, de igual forma ficamos livres dessa exigência. Nesse contexto devem ser entendidas as palavras de Paulo "...comei de tudo o que se vende no açougue..." (1 Cor. 10:25) A consciência pode então anular o acessório na Lei de Deus, sendo o acessório a regra, permanecendo os princípios. Como explicou Jesus, é preciso perceber o sentido dela (Mat. 23:23; Mr 2:27)

Nos tempos antigos a soberania de um pater familia era bastante abrangente, incluindo escravos e escravas, as esposas e os filhos. Estes, enquanto debaixo do seu tecto, eram equiparados a bens, na mesmissima categoria das casas, campos, gado e escravos!

Só assim se entende as relações de Abraão com as servas de Sara, não serem equiparadas a adultério! Os  direitos de propriedade, eram expressão da sua soberania e enquanto propriedade podiam ser usados conforme lhe aprouvesse, de forma perfeitamente legítima.

Hoje isto soa-nos chocante, uma terrível coerção da soberania dos outros, que subalterniza, esposa, filhos e escravos. A estes últimos retira-se-lhes o seu estatuto de seres humanos, também eles com direito à expressão da sua soberania.

Não mostra isso uma falha básica na expressão da soberania através da consciência?

Reflectindo nisso, percebemos que a consciência é moldada pelo consenso social e só pode reflectir o nosso progresso enquanto humanidade. Por isso julgar as acções do passado com base nos nossos valores actuais só pode redundar num julgamento injusto. Mas, de igual forma, julgar acções actuais à luz de antigos valores, será igualmente injusto! Deus, ao julgar com base na consciência individual, não comete esse erro.


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