sábado, 15 de fevereiro de 2014

A dúvida na espiritualidade



Muitos dos apologistas das Testemunhas de Jeová que intervêm em fóruns e blogues, costumam acusar os pretensos apóstatas como vazios de ideias e destruidores de esperanças exegeticamente legítimas. Acusam-nos de apenas serem capazes de lançar dúvidas, de destruírem e nunca construírem.

Contudo partem sempre de um pressuposto que fica sempre por provar, que é: A verdade é propriedade das Testemunhas de Jeová! Ou seja, acham que a teologia que defendem é de todas as mais certa. Para além de revelar uma presunção e arrogância que só pode ser defendida com base na fé, carece de uma confirmação, mesmo que nos terrenos da exegese bíblica, sem extravasar para outras considerações igualmente oportunas. 

O que esse tipo de declarações parece ignorar sem grande reflexão adicional, é a importância da dúvida na construção da fé. [1] Se recuarmos aos primórdios do movimento e ao seu fundador Charles Taze Russell [2] este foi apenas porque nutriu dúvidas, sobre as crenças que tinha sobre Deus e seu propósito que foi levado a um estudo das Escrituras. Foi esta busca que mais tarde veio a resultar numa interpretação diferenciada das demais e originar a actual organização das Testemunhas de Jeová, tão empenhada no proselitismo. 

Mesmo as suas mudanças em relação aquilo que consideram teologia ortodoxa, implica que pelo menos o Corpo Governante, autoridade máxima no seu seio, tenham dúvidas. Se apenas tivessem certezas, que necessidade haveria de anunciar “novas luzes” ou “novos entendimentos”? Perante a dúvida podemos reagir de uma maneira construtiva, que é analisar a questão e tirar conclusões. Ou reagir negativamente, defendendo irracionalmente uma posição, tornando-se dogmático. Quanto maior a dúvida maior o dogmatismo, como se a defesa intransigente transformasse magicamente uma dúvida numa certeza. Tal postura não pode ser confundida com fé, ou como alguns gostam de dizer “inabalável fé”. Porque a fé não é uma crença cega ou irracional, pelo menos conforme a Bíblia a define em Hebreus 11:1: “ A fé+ é a expectativa certa* de coisas esperadas,+ a demonstração evidente* de realidades,* embora não observadas.+” 

A fé exige uma postura racional, senão como pode ser uma “expectativa certa”? Para estar “certa” é preciso confirmá-la, avaliá-la, ponderá-la. Como pode haver “demonstração evidente”, sem ser analisando os diversos passos da “demonstração”? Poderíamos comparar a fé à hipótese científica. Esta ainda não tem confirmação, mas procura uma interpretação para um conjunto de observações e extrapola para acontecimentos que devem esperar ser observados no contexto da sua interpretação. De nenhuma forma pode ser confundida com dogmatismo. Mas certamente a fé pode alocar a dúvida na sua construção. 

Como se pode buscar a Deus, se tem a convicção de O conhecer já? Como se pode julgar conhece-Lo, quando somos criaturas de pó? Como podemos sequer concebê-Lo se nós estamos no domínio material e Ele no domínio espiritual, uma realidade que não nos é acessível? Como é que sendo seres finitos, podemos entender um ser infinito? É preciso aceitar como válida a ideia de que Deus se pode revelar de muitas maneiras e que algumas delas, nos sejam de momento absolutamente desconhecidas. Se é assim, porque não a dúvida? Esse motor de toda a busca. 

Quem não tem dúvidas deixou de buscar a Deus. E quem deixa de buscar a Deus, está condenado a perdê-Lo, a acabar sem Deus. Encontrará na sua insegurança um sucedâneo, mas nunca alcançará a realidade Dele. Pior ainda, nem sequer se aproxima Dele, mas afasta-se. 

Jesus na sua renovada visão do Deus Antigo, provou que esta busca nunca pára, não se pode estacionar numa posição. Estacionar é perdê-Lo. Portanto o que esses apologistas das testemunhas parecem ignorar é que não há fé, nem Deus, sem dúvidas que a confirmem e estimulem a busca Dele. 

Afinal o que o levou a converter-se ao movimento? Não foram as suas dúvidas, a sua busca por Deus, a sua necessidade espiritual? A menos que seja filho de Testemunhas de Jeová e as suas crenças resultem mais de imposição do que de uma busca espiritual pessoal. Portanto se agora está convencido da 'verdade' conforme defendida pelo movimento, lembro-o que o que o trouxe a ele foi precisamente a dúvida. Duvidar não é mau, trouxe-o à 'verdade'. Porque é que agora que pensa tê-la encontrado, ele se torna má? E se se tornou, como pode ter a certeza que a transformação da dúvida numa coisa má se deu depois que entrou no movimento e não estará mais à frente? Ou seja qual é afinal o critério que determina quando a dúvida é má ou é boa? 

Os apóstatas estão afinal a fazer-lhes um favor, promovendo a sua espiritualidade, que deve ser afinal o objectivo de todo o crente. Eles estão a ajudá-lo a progredir espiritualmente. Aceite a dúvida sobre assuntos teocráticos, procure esclarecer-se e com isso estará na busca de Deus, estará no percurso mais espiritual que podia desejar.


[1] http://www.ted.com/talks/lesley_hazleton_the_doubt_essential_to_faith.html
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Taze_Russell

2 comentários:

  1. Quero destacar as seguintes dúvidas/questões do texto e pedir uma reflexão por parte do autor do mesmo, para que ele possa ver que não é somente os do Corpo dos Governantes e suas Testemulas quem 'dogmatizam'.

    Eis as questões do texto:

    "Como podemos sequer concebê-Lo se nós estamos no domínio material e Ele no domínio espiritual, uma realidade que não nos é acessível? Como é que sendo seres finitos, podemos entender um ser infinito?"

    Eu quero questionar o seguinte, já que a minha fé e entendimento do assunto não é o mesmo do irmão aqui, e nem tampouco o mesmo de quaisquer corpo de governantes religionistas deste sistema de coisas:

    Por quê 1) "concebê-lo" e não "concebê-LOS? Afinal, será que as Escrituras pregam um único Deus de forma literal ou multidões deles?

    2) Será mesmo que existe um "domínio espiritual"? Se sim, o que é ele e como explicá-lo mediante a razão e ciência? Será mesmo que tal "domínio" - também conhecido como "mundo espiritual" ou "mundo dos espíritos" - existe realmente e é, como diz o texto, "uma realidade"?

    3) O que vem a ser um "ser infinito"? Essa definição pode mesmo ser sequer ter uma explicação arranhada?

    Aguardo respostas e também o saber dos irmãos que quiserem contribuir com alguma informação. Obrigado.

    Apóstolo TDS
    http://estudopessoal.blogspot.com.br

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  2. Respondendo às questões que teve a amabilidade de me deixar:
    1) Essa é uma questão antiga, já levantada por Marcião que aceitava pela menos a existência de dois deuses, um das Escrituras Hebraicas, que seria um Deus áspero e austero e um outro o das Escrituras Gregas, de índole completamente diferente, um Deus próximo e amoroso.
    Confesso a minha ignorância sobre quantos deuses existem. Mas sempre que um homem se prostra então ele criou um Deus. Nesse sentido existem realmente muitos e alguns homens, como na Antiguidade, podem ser considerados deuses.
    2) O “domínio espiritual” existe enquanto aceitarmos a sua existência. A realidade é apenas um conceito que partilhamos.
    3) Um “ser infinito” seria um ser sem princípio nem fim. Não há aqui nenhum arranhão.

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